Laceração hepática: tudo que você precisa saber

Conteúdo / Medicina de Emergência / Laceração hepática: tudo que você precisa saber

Fala pessoal, beleza? Hoje vamos falar um pouco sobre a laceração hepática no trauma, um tema muito presente na vida e nas provas de residência médica. Pode ficar tranquilo que aqui a divisão em oito segmentos hepáticos não é significante, ok?

Por onde começar ?

Quando o paciente vítima de qualquer trauma chega no PS, o atendimento deve ser iniciado pelo ABCDE do trauma e realizado o FAST (Foccused Abdominal Sonography for Trauma) ainda na sala de emergência. 

Vítimas instáveis devem ser levadas imediatamente ao centro cirúrgico para laparotomia de emergência. Os estáveis podem ser avaliados com mais cautela.Direcionando o nosso pensamento a pacientes com laceração hepática, o FAST pode ser positivo no espaço hepatorrenal (espaço de Morrison), evidenciando possível sangue na cavidade. 

Líquido no espaço hepato-renal (em preto). Fonte: Doença trauma : fisiopatogenia, desafios e aplicação prática / editores Hamilton Petry de Souza, Ricardo Breigeiron, Daniel Weiss Vilhordo; editor internacional Raul Coimbra. — São Paulo : Editora Atheneu, 2015

Após o FAST positivo, o próximo passo é realizar uma tomografia computadorizada (se o  paciente estiver estável), exame que tem alta sensibilidade e especificidade para detectar lesões em órgãos parenquimatosos.

Assim, quando injetado o contraste, o parênquima hepático, que deveria ficar homogêneo, está heterogêneo. Também se consegue evidenciar sangramentos hepáticos por meio de blushs arteriais, que são acúmulos de contrastes fora dos vasos.

E a classificação ?

A laceração hepática costuma ser dividida em graus pela Sociedade Americana de Cirurgia do Trauma Hepático, mas no fim das contas o que realmente importa para a decisão do tratamento do paciente é sua estabilidade hemodinâmica.

A título de conhecimento:

Grau IHematoma subcapsular < 10% da superfícieLaceração < 1cm de profundidade
Grau IIHematoma subcapsular 10-50% da superfícieLaceração 1-3cm de profundidade, < 10cm de comprimento
Grau IIIHematoma subcapsular > 50% da superfície ou em expansão Laceração > 3cm de profundidade
Grau IVRotura do parênquima envolvendo 25-75% do lobo hepático ou 1 a 3 segmentos de Couinaud em um único lobo
Grau VRotura de parênquima > 75% do lobo ou > 3 segmentos de CouinaudLesões venosas justa hepáticas (veia cava retro-hepática/veias hepáticas)
Grau VIAvulsão hepática

Vale lembrar que cerca de ¾ das lesões hepáticas pertencem aos graus I a III.

Exemplo de lesão hepática grau III, onde a seta preta mostra hematoma, a seta azul lesão de parênquima hepático e a seta vermelha um blush arterial. Fonte: Doença trauma : fisiopatogenia, desafios e aplicação prática / editores Hamilton Petry de Souza, Ricardo Breigeiron, Daniel Weiss Vilhordo; editor internacional Raul Coimbra. — São Paulo : Editora Atheneu, 2015.

Agora que eu sei como identificar a lesão, como eu trato ?

Bom, paciente instável deve ir direto pra mesa cirúrgica. Após abertura do abdome, é avaliada toda a cavidade. 

Mas, sendo seletivos para lesões de fígado, se este for a causa do sangramento e da instabilidade, o ideal é realizar empacotamento hepático (encher o fígado de compressas) e esperar estancar o sangramento, sempre com protocolo de transfusão maciça ativado. 

Se o sangramento parar, pode ser feita ligadura seletiva de vasos e interposição de retalho de epíplon no interior da lesão. 

Se não parar de sangrar e o paciente continuar instável, o ideal é uma cirurgia de controle de danos. Mas o que é isso? 

Uma cirurgia no menor tempo cirúrgico, que controle rapidamente o sangramento, apenas para tirar o paciente do momento crítico, permitir que ele fique em UTI se recuperando hemodinamicamente (evitando o famoso diamante da morte – hipotermia, acidose, hipocalcemia e coagulopatia) para uma posterior reabordagem cirúrgica com mais calma.

Atrasar a recuperação em mais de 48h eleva o risco de infecção de forma significativa.

A título de curiosidade, suturar parênquima hepático não é recomendado, e o tecido desvascularizado deve ser debridado. Ressecções hepáticas devem ser evitadas.

E no paciente estável?

Bom, aqui entra a grande discussão dos protocolos atuais. Estabilidade hemodinâmica + ausência de peritonite + ausência de outras lesões abdominais cirúrgicas = tratamento conservador.

O que isso quer dizer? Que, mesmo com uma laceração hepática, o paciente não vai ser abordado cirurgicamente, independentemente da classificação do trauma hepático.

Hoje, cerca de 80% dos traumas hepáticos são tratados de forma conservadora, com índices altos de sucesso (82-100%). As complicações podem envolver hemorragia, abscessos e bilioma, porém em porcentagens muito pequenas.

O paciente deve ser internado em UTI, em local com condições de intervenção cirúrgica se necessário, permanecer em repouso, ter parâmetros vitais e laboratoriais (hemoglobina e hematócrito) avaliados de forma seriada.

Em casos de blush na tomografia, a angioembolização pode ser um tratamento interessante para evitar cirurgias mais invasivas, e deve ser realizada de forma precoce para evitar complicações.

O fígado encontra-se cicatrizado em torno de 6 semanas e é por conta dessa alta capacidade de regeneração que os tratamentos não operatórios funcionam tanto. Além disso, a maior parte dos sangramentos hepáticos no trauma são de origem venosa, ou seja, de baixa pressão, e que cessam espontaneamente.

A e B. Paciente com trauma hepático grau V, com acometimento de segmentos IV, V, VII e VIII e C. 30 dias após tratamento não operatório. Fonte: Doença trauma: fisiopatogenia, desafios e aplicação prática / editores Hamilton Petry de Souza, Ricardo Breigeiron, Daniel Weiss Vilhordo; editor internacional Raul Coimbra. — São Paulo : Editora Atheneu, 2015.

A grande controvérsia ao redor desse tipo de tratamento é a falta de certeza de que não há lesão de vísceras ocas, já que os exames de imagem não são bons para avaliar esses órgãos e o aparecimento de pneumoperitônio ou pneumoretroperitônio é raro. 

E também quando repetir a TC — segundo a maioria dos estudos, não há indicação de repetir a TC em traumas I a III. Traumas mais graves o exame deve ser repetido em uma semana.

A falha no tratamento não operatório (avaliada por queda do Hb/Ht, instabilidade hemodinâmica, taquicardia persistente) costuma ocorrer nas primeiras 24h pós trauma e correspondem à necessidade de intervenção cirúrgica para controlar o sangramento.

E nos traumas penetrantes ?

Nesses casos, o FAST e a TC também podem ser solicitados. Porém, a presença de lesão associada alcança 65%, sendo a principal a perfuração de intestino delgado. Assim, são casos que demandam maior atenção, já que não vamos enxergar tão bem essas lesões no FAST e TC, o que acaba limitando a possibilidade de tratamento não operatório. 

Há boas evidências em estudos de que o tratamento não operatório funciona em traumas penetrantes hepáticos, mas muitos centros ainda têm como conduta a cirurgia.

Trauma penetrante (tiro) tratado de forma não operatória. Fonte: Clínica cirúrgica/ editores Joaquim José Gama-Rodrigues, Marcel Cerqueira Cesar Machado, Sarnir Rasslan. – Barueri, SP : Manolc, 2008

É isso que tínhamos pra falar sobre a laceração hepática!

É isso galera, espero que tenha dado pra aprender um pouco mais sobre as lesões do fígado no trauma! Caso queira estar completamente preparado para lidar com a sala de emergência, conheça o PSMedway. Por meio de aulas teóricas, interativas e simulações realísticas, ensinamos como conduzir as patologias mais graves no departamento de emergência.

Abraços e até a próxima.

Referências

Doença trauma : fisiopatogenia, desafios e aplicação prática / editores Hamilton Petry de Souza, Ricardo Breigeiron, Daniel Weiss Vilhordo; editor internacional Raul Coimbra. — São Paulo : Editora Atheneu, 2015.

Greenfield’s surgery : scientific principles and practice / editors, Michael W. Mulholland, Keith D. Lillemoe, Gerard Doherty, Gilbert R. Upchurch, Jr., Hasan B. Alam, Timothy M. Pawlik ; illustrations by Holly R. Fischer.

Clínica cirúrgica/ editores Joaquim José Gama-Rodrigues, Marcel Cerqueira Cesar Machado, Sarnir Rasslan. – Barueri, SP : Manolc, 2008

É médico e quer contribuir para o blog da Medway?

Cadastre-se
LizandraRener Cavioli

Lizandra Rener Cavioli

Médica pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro com residência em Cirurgia Geral pela Unifesp.