Fala galerinha, tudo certo? Hoje vim aqui pra conversar com vocês um pouquinho sobre AVC isquêmico. A gente sabe que quando se trata de neurologia, muita gente torce o nariz só de pensar. Mas nem tudo dá pra ser “ao neurologista”, certo? E se tem uma coisa que todo médico precisa (ou deveria) saber de neurologia, é reconhecer um AVC.
Então, quando o paciente chega no PS com um lado do corpo fraco e a boca torta, por onde a gente começa? Se você já se perguntou isso, continua aqui comigo que até o final eu espero que a gente aprenda juntos como começar a conduzir um paciente com suspeita de AVC.
Vamos começar do começo. AVC é a sigla para Acidente Vascular Cerebral, e pode ser de origem isquêmica (muito mais comum) ou hemorrágica (menos comum, mas potencialmente mais grave). Por ser mais frequente, o foco da nossa conversa vai ser o AVC isquêmico (AVCI), combinado?
Como outros eventos de origem vascular, é um quadro de origem súbita: não é infrequente que o paciente saiba relatar exatamente o que ele estava fazendo na hora que iniciou o déficit. Sem dúvidas, o sintoma que os pacientes referem com maior frequência é fraqueza de um lado do corpo e desvio de rima labial, associado ou não a hipoestesia do mesmo lado. Contudo, temos que lembrar que AVC não é só fraqueza. Qualquer déficit neurológico que surja agudamente deve deixar a gente com a pulga atrás da orelha para suspeitar de AVC: vertigem súbita, rebaixamento do nível de consciência, etc.
Na suspeita de um déficit neurológico de origem vascular, existe uma escala que aplicamos para tornar mais rápida e objetiva a avaliação deste déficit: a escala do NIHSS (National Institute of Health Stroke Scale). Nosso objetivo aqui não é destrinchá-la, mas precisamos saber que ela existe. Sua aplicação pode ser feita não só por médicos, mas também por outros profissionais de saúde, com o objetivo de quantificar rapidamente os déficits – afinal, como a gente vai ver mais pra frente, tempo é cérebro. Quem tiver interesse em conhecer a escala, é só clicar aqui. A pontuação da escala leva em consideração aspectos como nível de consciência, motricidade, sensibilidade e fala. Além da gravidade, a evolução da escala ao longo das horas e dias subsequentes também permite acompanhar a resposta do paciente ao tratamento!
Mas não é só isso. Tem outra coisa muito importante (e simples!) que não podemos esquecer de avaliar em um paciente com queixa de déficit focal: a glicemia capilar! A hipoglicemia é uma condição que pode provocar um déficit focal novo e simular um AVC, por isso todo paciente ganha um dextro, beleza?
O primeiro exame complementar que o paciente com suspeita de AVC deve fazer é uma tomografia de crânio sem contraste. O nosso objetivo aqui é descartar um evento hemorrágico: apesar de ser bem menos frequente, a abordagem terapêutica é completamente diferente do isquêmico (cujo tratamento envolve a trombólise química). Clinicamente, apesar de termos alguns sinais que podem sugerir um evento hemorrágico, como a cefaleia mais forte da vida ou rebaixamento do nível de consciência importante, são pouco específicos e só a tomografia de fato descarta o sangramento.
Ninguém aqui vai querer trombolisar alguém que está sangrando, certo? Por isso, a TC é sem contraste: se tiver algum sinal de sangramento, ele vai aparecer como uma imagem branca, hiperdensa na tomografia, e o nosso raciocínio vai ser outro.
Entretanto, se o seu paciente estiver dentro dos 80% de casos de AVC, portanto de origem isquêmica, a TC pode nos ajudar com algumas pistas:
A tomografia de admissão também tem o objetivo de classificar o paciente na escala do ASPECTS. Trata-se de uma escala que avalia 10 territórios diferentes em cada hemisfério: núcleo caudado, núcleo lentiforme, cápsula interna, ínsula e os segmentos M1 a M6 da artéria cerebral média.
Todos os pacientes começam com 10 pontos no ASPECTS (TC normal) e a cada um desses territórios com hipodensidade o paciente perde um ponto. Por exemplo, hipodensidade em cápsula interna e núcleo lentiforme: menos dois pontos, ASPECTS 8. Quanto menor a pontuação, mais sinais de isquemia presentes e, portanto, maior a gravidade ou mais tardia é a evolução da isquemia.
A TC também pode ser absolutamente normal! Em todos esses casos, nos sentimos mais seguros para determinar a instituição do tratamento, seja a trombólise e/ou a trombectomia mecânica.
O tratamento do AVC isquêmico é a trombólise com alteplase endovenoso, visando à recanalização do vaso obstruído. Infelizmente, não são todos os pacientes com AVC isquêmico que receberão tratamento específico para a causa da oclusão. Isso porque para indicarmos a trombólise, temos que avaliar se o paciente preenche alguns critérios:
Para a realização da trombólise, a pressão arterial do paciente não deve ser maior que 185/110 mmHg, sendo autorizado o tratamento com drogas vasoativas (geralmente Nipride) se necessário.
A dose que utilizamos é 0,9 mg/kg de alteplase EV até um máximo de 90mg, sendo 10% da dose em bolus e o restante infundido em 1 hora. Durante a trombólise, o paciente deve ser monitorizado de perto: a PA deve ser mantida abaixo de 180/105 mmHg e a escala do NIH deve ser repetida a cada 15 minutos. O objetivo é monitorar sinais de piora neurológica: caso o paciente apresente uma piora na escala do NIH de 4 pontos ou mais, está indicada a interrupção da trombólise e a repetição da TC de crânio de urgência para descartar transformação hemorrágica.
Além da trombólise, atualmente nós também temos a trombectomia mecânica: é um procedimento neurointervencionista onde, por meio de acesso vascular (pela radial ou femoral), introduz-se um device que faz a aspiração do trombo.
A trombectomia mecânica tem alguns critérios mais específicos de inclusão: pacientes com oclusão arterial proximal (devido ao acesso vascular), com pontuação no NIH maior ou igual a 6 pontos. Inicialmente, eram incluídos pacientes com início do déficit em até 6 horas, mas atualmente sabemos que a trombectomia mecânica pode ser feita em até 24 horas de início dos sintomas em alguns casos específicos.
Vale ressaltar aqui que a trombectomia tem um NNT baixíssimo (apenas 3), ou seja, a cada 3 pacientes que são submetidos ao procedimento, 1 terá benefício real. É um dos tratamentos com melhor eficácia da Medicina!
Quando o paciente foi dormir bem e acorda hemiparético, a avaliação fica um pouco mais delicada. Isso porque agora não temos como definir exatamente o momento de início dos sintomas, certo? E aí, como a gente define se pode fazer trombólise nesse paciente?
Nesses casos, existe uma avaliação mais específica que a gente consegue fazer por meio de ressonância magnética. Por meio de diferentes sequências, a RMN nos diz, indiretamente, o tempo de evolução da isquemia e, portanto, se é seguro aquele paciente ser trombolisado.
Nossa, mas ressonância pra AVC? Pois é, meio diferente, né? Sabemos que no Brasil não é uma realidade, uma vez que a RMN é um exame caro, demorado e bem menos disponível do que a TC. Dessa forma, existe uma avaliação que podemos fazer pela própria tomografia chamada de perfusão: basicamente, o objetivo é definir quanto de tecido cerebral já está morto e quanto de tecido cerebral é potencialmente salvável. Então, baseado em uma estimativa do início dos sintomas do paciente (que foi validada por estudos), a gente define se será feita a trombólise. Legal, né?
Depois de toda essa saga no serviço de emergência, inicia-se a segunda parte da saga, onde será investigada a causa do AVC para instituição da profilaxia secundária para evitar recorrências: ter um AVC prévio é o fator de risco mais importante para um novo AVC!
Além disso, os pacientes são avaliados por uma equipe multidisciplinar, composta por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, fonoaudiólogos etc, com o objetivo de iniciar a reabilitação o mais precocemente possível, visando sempre a melhorar a qualidade de vida daquele paciente que eventualmente apresente alguma sequela do evento.
Nós poderíamos continuar conversando indefinidamente sobre AVC isquêmico, mas não é o nosso objetivo de hoje. Como eu disse, espero que esse textinho tenha sido esclarecedor para vocês, e que deixem de perceber a neurologia como um bicho de sete cabeças (eu juro que não é). Qualquer dúvida ou comentário, coloquem aqui embaixo que a gente responde!
E para você que trabalha nas emergências da vida e quer aprender mais sobre os principais casos que chegam no PS, não deixe de conferir o nosso curso, o PSMedway. Tenho certeza que vamos conseguir acrescentar cada vez mais para você se sentir ainda mais seguro para atuar nas emergências!
Muito obrigada, pessoal. Até mais!
Gabi, nascida no interior de São Paulo, criada em Niterói (RJ) e capixaba do fundo do coração. Formada pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), atualmente é residente de Neurologia pela USP de Ribeirão Preto. Apaixonada pela medicina e, especialmente, pela neurologia e seus desafios, gosta do que desperta a sua curiosidade.