Eletrocardiograma normal na pediatria: quais as diferenças pro adulto?

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Imagine você, um paciente recém-nascido que, por qualquer motivo, interna na UTI neonatal e acaba recebendo um eletrocardiograma. Se você já tem medo de interpretar um ECG no adulto, imagina o de um serzinho de poucas horas de vida? 

Para começar a ter alguma segurança nesse assunto, na vida e nas provas de residência, é preciso saber o que configura um eletrocardiograma normal na pediatria

E, como tudo nessa área da Medicina, o normal pode variar um pouco dependendo da idade que estamos nos referindo. Vem com a gente que vamos deixar tudo bem claro!

Quando falamos de ECG e de transição da circulação pré-natal para pós-natal, precisamos nos lembrar de alguns conceitos. Na circulação pré-natal, temos uma circulação pulmonar bem mais vasoconstrita, com uma pressão pulmonar mais alta (o pulmão não tá funcionando no momento intraútero, lembra?). 

Por conta disso, o ventrículo direito do nosso feto tem que bombear sangue contra uma pressão aumentada, e grande parte desse sangue se desvia para o lado esquerdo do corpo através do ducto arterial

Graças a essa fisiologia peculiar do período neonatal, uma série de achados eletrocardiográficos que seriam considerados patológicos no adulto são considerados normais no paciente jovem, principalmente nos recém-nascidos a partir de 2 dias de vida, perdurando por grande parte da infância. 

Aqui, vou resumir as principais alterações que a faixa etária pediátrica pode aparecer, e mais para frente explicaremos melhor cada uma no detalhe:

  • onda T negativa de V1 a V3: nas crianças, é normal esse padrão de repolarização ventricular;
  • ondas R grandes em derivações que avaliam VD: V3R, V4R, V1 (às vezes, até V3);
  • desvio do eixo direito para a direita;
  • padrão Rsr’ em V1, similar a um padrão de bloqueio de ramo direito, mas com o QRS estreito;
  • QRS mais estreito, até 90 ms.

Além disso, é importante lembrarmos que as crianças pequenas têm frequências cardíacas mais aceleradas. Se liga nos valores que geralmente usamos de referência:

IdadeAcordadoDormindo
Até 28 dias de vida100 – 20590 – 160
29 dias a 1 ano100 – 18090 – 160
1 – 3 anos98 – 14080 – 120
3 – 5 anos80 – 12065 – 100
6 – 12 anos75 – 11858 – 90
> 12 anos60 – 10050 – 90
Valores de FC conforme faixa etária Fonte: Fioretto UTI Pediátrica (2a edição), página 214

Também temos uma aulinha de 10 minutos explicando tudo isso em vídeo, caso você prefira! Se liga:

Conceitos do eletrocardiograma normal na pediatria

Durante a infância, o ritmo cardíaco sofre interferência da respiração e do retorno venoso, havendo maior influência do tônus parassimpático nessa faixa etária, o que gera um ritmo mais rápido durante a inspiração e mais lento durante a expiração e causa o que chamamos de arritmia sinusal (ou respiratória). 

O diagnóstico se dá quando a variação entre o ciclo mais curto e o mais longo no ECG for maior do que 0,12 segundos, e é um fenômeno típico de crianças e adolescentes, sem necessidade de investigação ou terapia específica. Confiram a imagem abaixo que demonstra claramente este achado:

Eletrocardiograma normal de criança de 3 anos de idade: arritmia sinusal, complexos QRS de grande amplitude em derivações precordiais e onda T negativa entre V1-V3. Fonte: Jatene, MB; Wagenfuhr F; Foronda, G: Cardiologia Pediátrica (série Pediatria do ICr e HC/FMUSP), 2a edição,  pág 147.

Durante a sua avaliação do eletro de uma criança, 2 outros itens devem ser observados para assegurar uma interpretação correta: 

  • Amplitude torácica:
    • A distância entre a parede do tórax e as estruturas cardíacas é notadamente menor nas crianças em relação aos adolescentes e adultos. Por esse motivo, a interpretação das amplitudes de ondas e intervalos deve ser feita de forma individualizada conforme a faixa etária, de modo a evitar diagnósticos equivocados de sobrecargas de câmaras cardíacas, por exemplo.
  • Anatomia cardíaca:
    • Devido às peculiaridades da circulação fetal e do período de transição para a circulação neonatal, a estrutura cardíaca de um bebê recém nascido é diferente daquela de uma criança maior no que diz respeito à dimensão e massa das câmaras cardíacas. Por esse motivo, a faixa etária sempre deve ser levada em consideração no momento da avaliação.

Observem a imagem abaixo, que demonstra a evolução da espessura miocárdica e relação das cavidades ventriculares ao longo do desenvolvimento de uma criança nos primeiros 2 meses de vida. 

Notem a diferença entre o tamanho da cavidade ventricular esquerda no momento do nascimento em relação aos 2 meses de vida. Certamente essa evolução se reflete nos vetores eletrocardiográficos, não é mesmo?

Variação da espessura miocárdica e das cavidades ventriculares de uma criança: ao nascimento, com 8 dias de vida e aos 2 meses. Fonte: Sanches, PC, Moffa, PJ: Tranchesi – Eletrocardiograma normal e patológico (2001) 

Especificidades pediátricas

Diante dessas peculiaridades, vamos avaliar as especificidades pediátricas de cada uma das partes do eletrocardiograma normal na Pediatria:

  • Derivações precordiais: quando a criança  nasce, há um predomínio elétrico e funcional das câmaras direitas, que vai sendo alterado conforme o crescimento até a idade de cerca de 2 meses, quando o coração esquerdo torna-se mais proeminente. Por tal motivo, na infância:
    • Onda R em V1 e onda S em V6 são menores
    • Onda S em V1 e onda R em V6 são maiores.
  • Eixo elétrico do coração: normal entre -30o e + 100o
  • Devido à FC mais elevada, a duração das ondas e intervalos é mais curto durante a infância, e vai aumentando progressivamente de acordo com a queda de FC.
    • O intervalo PR é mais curto
  • O complexo QRS é mais estreito devido à FC mais elevada. A amplitude costuma ser maior que a encontrada nos adultos, devido à menor espessura da parede torácica! Os seguintes valores denotam normalidade: 
    • 90ms (< 4 anos)
    • 100ms (5-16 anos)
    • 120ms (adultos)
  • Onda P: pode apresentar variações morfológicas, sem que isso signifique patologia, principalmente em adolescentes
    • Se tiver eixo normal ((-) em aVR, (+) em DI e V6), pode significar diferentes pontos de despolarização de células P no NSA, e não um quadro de ritmo atrial ectópico!
  • Onda T: acompanha o ventrículo dominante! A mudança da voltagem da onda T nas derivações precordiais direitas (V1-V3) varia de acordo com a PAP:
    • No recém nascido, é positiva nas derivações V1-V3, tornando-se negativa a partir da primeira semana de vida, e pode permanecer negativa até a adolescência, sem significado patológico.
    • Se permanece positiva em V1 por período >3DV pode ser sugestiva de hipertensão pulmonar
    • Onda T positiva em V1 (“onda juvenil”) pode ocorrer em até 20% dos adultos, sem significado patológico
    • Padrão bífido (ondas T transicionais), uma variante da normalidade na infância que pode falsear o diagnóstico de um BAV 2:1
    • A presença de ondas T negativas entre V1-V3 durante a infância não significa alteração da repolarização!
  • Intervalo QT: devido à imaturidade do sistema de condução, o intervalo QT é discretamente mais prolongado no período neonatal. Os valores de referência para o intervalo QT são discrepantes na literatura, mas em linhas gerais, utilizamos os seguintes intervalos como referência:  
    • Perinatal: 470ms
    • Pré-púberes: 400 +/- 20ms
    • Pós-púberes: 420 +/- 20ms
  • Devido à menor espessura da caixa torácica e menor distância entre a parede torácica e as cavidades cardíacas, o diagnóstico de SVE na infância através do critério de Sokolow-Lyon se dá apenas se for maior que 45mm, acompanhado de alteração de repolarização ventricular!

Além da identificação de distúrbios do ritmo cardíaco e diagnóstico de alterações funcionais, o eletrocardiograma é ferramenta de grande valia na avaliação das cardiopatias congênitas, associado aos dados de anamnese, exame físico e radiografia de tórax. 

Alguns achados são clássicos, devem ser conhecidos e estão descritos a seguir:

  • A presença de complexo rsr’ em V1-V2, sem atraso final de condução, é relativamente comum em crianças com coração estruturalmente normal! No entanto, o distúrbio de condução pelo ramo direito (rSR’ com ondas S empastadas em V5-V6) está associado à presença de CIA.
  • Além disso, a presença de bloqueio divisional ântero-superior esquerdo (rS em D2, D3 e aVF, com S de D3 > S de D2 e desvio do QRS à esquerda, além de -45o) está associada à presença de Defeito do Septo Atriovenricular Total (DSAVT).
  • A origem anômala da artéria coronária esquerda a partir do tronco pulmonar (ALCAPA) é caracterizada, eletrocardiograficamente, pela presença de onda Q profunda em V4-V6, D1 e aVL, associada à alteração da repolarização ventricular e progressão lenta de R em V1-V3.

Entendeu mais sobre o eletrocardiograma normal na pediatria?

Ufa! Ficamos por aqui! Espero que tenha ficado um pouco mais clara a diferença de um eletrocardiograma normal na pediátrico para um adulto. Caso você queira se aprofundar um pouco mais no assunto de eletro, temos um ebook inteirinho para você devorar (e de graça!). Nos vemos nos próximos textos!

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ECG na infância e nas Cardiopatias Congênitas – Rogério Andalaft (2020)

Sousa H, Vieira A, Moura C: O eletrocardiograma infantil normal, noções para Pediatras. Acta Pediatr Port 2011; 42 (5): 245 – 40.

Cardiologia Pediátrica / editores Marcelo B Jatene, Jaqueline Wagenfuhr, Gustvo Foroda; colaboração Alessandra Costa Barreto …. [et al] – 2a ed – Santana de Parnaíba [SP]: Manole, 2021.

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A Redação

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