Febre maculosa: a doença do carrapato

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Quer saber mais sobre essa doença e não comer bola na hora de raciocinar sobre as possibilidades diagnósticas do paciente com febre? Então se liga nesse post com tudo o que você precisa conhecer sobre a febre maculosa.

O que é a febre maculosa?

Em inglês, conhecida como rocky mountain spotted fever, ou febre maculosa das montanhas rochosas em português, foi assim denominada por ter sido descrita primeiramente nos Estados Unidos, ainda no século XIX, com grande incidência nos estados americanos cortados pela cordilheira das Montanhas Rochosas. Entretanto, atualmente, sua maior prevalência fica nos estados americanos do sudeste e centro-sul do país.

O agente etiológico, a Rickettsia rickettsii, foi descrito apenas em 1906, por Howard Taylor Ricketts, que também identificou o carrapato como principal vetor de transmissão. Pertencendo então ao grupo das riquetsioses, é a principal riquetsiose dos Estados Unidos.

A maior incidência parece ser entre crianças de 5 a 9 anos e adultos de 40 a 64 anos, também parece predominar em homens.

Tá, mas e no Brasil, tem importância para nós?

Sim! É uma doença do ocidente, ocorrendo além dos Estados Unidos, no Canadá, México, América Central e algumas áreas da América do Sul, como Bolívia, Colômbia, Argentina e Brasil. Descrita pela primeira vez no Brasil em 1929 em São Paulo, foi também depois identificada no Rio de Janeiro e em Minas Gerais.

A principal região acometida no Brasil é a Sudeste, com alguns casos esporádicos ocorrendo em alguns outros estados, principalmente no Sul do país.  O estado de São Paulo sozinho concentra quase metade dos casos notificados no Brasil. Felizmente, o número de casos vem em declínio desde 2005, porém nossa taxa de mortalidade ainda é muito alta, podendo chegar a 30%.

imagem ilustrativa febre maculosa
Imagem disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/southeast-region-map-location-brazil-1531687028)

A variação geográfica de distribuição da doença tem íntima relação com a presença do vetor e principal reservatório da doença no Brasil: o carrapato-estrela (Amblyomma cajennense). Há também uma distribuição sazonal, ocorrendo principalmente de junho a outubro, relacionando-se com o aumento da atividade do carrapato. As capivaras e os cavalos têm grande importância no ciclo da febre maculosa, pois são os principais reservatórios desses carrapatos. Regiões sombreadas, protegidas do sol, com vegetações e pastos altos, próximas a rios e lagos são ambientes ideais para proliferação dos carrapatos.

Quem causa febre maculosa?

Como já mencionado, o agente etiológico da doença é a Rickettsia rickettsii, um cocobacilo Gram-negativo, imóvel. É uma bactéria intracelular obrigatória, o que justifica sua dificuldade de crescimento em culturas bacterianas de rotina, necessitando de meios próprios, com células. Isso se deve à ausência de enzimas necessárias para o metabolismo de açúcares e aminoácidos e para síntese de lipídeos e nucleotídeos. A espécie tem a habilidade de atravessar membranas celulares de célula a célula sem causar danos e pode fazer isso com elevada rapidez.

Riquétsias dentro de uma célula humana

imagem ilustrativa de febre maculosa
Imagem disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/bacteria-rickettsia-small-red-inside-human-420181819

O vetor dessa patologia é um carrapato, contudo a espécie exata pode variar a depender da região. Nos Estados Unidos, o principal transmissor nos estados do sudeste (atual região mais acometida) é o carrapato do cão americano (Dermacentor variabilis), enquanto nos estados das montanhas rochosas é o carrapato da madeira (Dermacentor andersoni).

Já nas Américas Central e do Sul, o principal vetor é o Carrapato-estrela, o Amblyomma cajennense, embora outras espécies também tenham sido identificadas no Brasil, o Amblyomma aureolatum e o Amblyomma dubitatum.

Além de vetores, eles são também os principais reservatórios da R. rickettsii na natureza, isso porque podem permanecer infectados durante toda sua vida, com as bactérias presentes em todos os seus estados de maturação e inclusive sendo transmitidos por via transovariana, de modo a contaminar todas as futuras gerações.

Amblyomma cajennense

imagem ilustrativa de febre maculosa
Imagem disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/ectoparasite-amblyomma-cajennense-cayenne-tick-female-1558078994

A transmissão é feita pela mordida do carrapato, embora em até um terço dos casos, os pacientes não consigam relatar a picada do carrapato, visto ela ser indolor e em regiões de pelos ou dobras, difíceis de serem vistas. A transmissão pode ser feita por qualquer uma das fases de vida do animal (larva, ninfa ou adulto) e exige um período mínimo de adesão à pele de 6 a 10 horas para que as riquétsias sejam liberadas pelas glândulas salivares dos carrapatos. A infecção pode também acontecer com o contato com os fluidos do carrapato ao ser esmagado para sua remoção.

Após a inoculação das bactérias pela mordedura do carrapato, a Riquétsia é endocitada pelas células endoteliais via uma complexa interação entre proteínas do próprio microrganismo e da membrana celular do hospedeiro. Uma vez dentro das células, a bactéria utiliza de enzimas para lisar o fagossomo em que se encontra e cair no citoplasma. Como já mencionado, a riquétsia tem a capacidade de transitar entre células vizinhas, se disseminando por todo o corpo.

O mecanismo patológico da febre maculosa envolve uma vasculite de pequenos vasos. O mecanismo exato pelo qual a R. rickettsii produz sua lesão característica ao endotélio dos pequenos vasos é ainda incerto. Elas não secretam exotoxinas e podem matar a célula infectada diretamente, gerando necrose celular, independente de um mecanismo imune-mediado, embora as células infectadas possam também ser eliminadas por mecanismo citotóxico de linfócitos T CD8+ e células NK.  O resultado disso é lesão celular que acaba atraindo uma resposta inflamatória local, com acúmulo de linfócitos e macrófagos, ocasionando uma vasculite linfohistiocítica.

A vasculite sistêmica leva ao aumento de permeabilidade vascular, ocasionando edema, hemorragias e ativação humoral e de mecanismos de coagulação. O vazamento tecidual de líquidos pode ocasionar sérios danos, principalmente nos pulmões e cérebro, já que esses órgãos não dispõem de vasos linfáticos para extração de fluido intersticial. A resposta do hospedeiro pode, então, gerar uma série de complicações, como pneumonite intersticial, miocardite e encefalite.

imagem ilustrativa de febre maculosa
Imagem disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/tiny-doctor-male-female-characters-huge-1912020919

Manifestações clínicas da febre maculosa

Em geral, os sintomas aparecem com um tempo de incubação de 2 a 14 dias após a picada, com uma média de 5 a 7 dias.

Os sintomas iniciais são inespecíficos, contribuindo ainda mais com o atraso no diagnóstico. A maioria dos pacientes apresenta febre. Outros sintomas incluem cefaleia, artralgia e mialgia, sendo a cefaleia geralmente importante. Também podem ocorrer náuseas e dor abdominal, principalmente em crianças, podendo ser importante. Quando a dor abdominal ocorre antes das manchas, pode levar a erros diagnósticos, como suspeita de apendicite, colecistite e até obstrução intestinal.

O mais clássico, e que dá nome à doença são as máculas, presentes em cerca de 90% dos pacientes. Infelizmente, o rash não é tão precoce e geralmente ocorre entre o terceiro e quinto dia da doença, depois que o paciente já procurou o médico, contribuindo ainda mais com atraso no diagnóstico. O clássico é um rash maculopapular que pode se tornar petequial com o tempo. Ele geralmente começa nos tornozelos e punhos e de lá se espalha para o tronco. O acometimento de palmas e solas é característico, embora geralmente apareça tardiamente.

Rash Maculopapular no punho

imagem ilustrativa de febre maculosa
Imagem disponível em: https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/tiny-doctor-male-female-characters-huge-1912020919

Rash Palmar

imagem ilustrativa de febre maculosa
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Outras manifestações clínicas que podem ser encontradas incluem: 

  • sinais neurológicos focais;
  • confusão mental e crises epilépticas, que indicam acometimento encefálico;
  • conjuntivite e alterações ao exame de fundo de olho;
  • alterações eletrocardiográficas;
  • necrose cutânea, principalmente de regiões com circulação terminal como dedos, nariz, orelhas e genitais.

Achados laboratoriais da febre maculosa

Embora inicialmente o hemograma na maioria dos casos seja normal, com a progressão da doença há o surgimento de plaquetopenia, que pode ser severa. Acredita-se que o mecanismo se deva à destruição das plaquetas nas regiões de lesão endotelial induzida pela riquétsia. Embora a ocorrência de CIVD seja incomum, podemos encontrar redução nos níveis de fibrinogênio e aumento dos produtos de degradação da fibrina.

Outro achado comum é a hiponatremia, que pode ocorrer por uma secreção apropriadamente aumentada de ADH, resultante da hipovolemia relativa secundária à perda de líquido para o terceiro espaço pelo aumento da permeabilidade vascular sistêmica. A hiponatremia é ainda mais comum nos casos de envolvimento do sistema nervoso central (SNC). Outros achados incluem também elevação de transaminases e bilirrubinas, com icterícia.

Azotemia também pode ocorrer em quase 20% dos pacientes. A lesão renal pode ser do tipo pré-renal, pela redução da volemia efetiva, como previamente mencionado, ou mesmo por necrose tubular aguda decorrente de hipotensão ou até inflamação vascular intersticial por lesão direta pela riquétsia.

Nos casos de envolvimento do SNC, a análise do líquor pode revelar uma pleocitose, geralmente com celularidade inferior a 100 cel/mm³, o predomínio pode ser tanto de linfócitos e monócitos quanto de polimorfonucleares. A proteinorraquia pode estar moderadamente elevada, (100 a 200 mg/dL) e a glicose não consumida.

Tratamento da febre maculosa

Sem tratamento específico, a febre maculosa é uma condição grave, com elevada mortalidade, e antes da antibioticoterapia, a letalidade chegava até a 80%. Mesmo com o uso dos antimicrobianos, o tempo de início da prescrição do tratamento é diretamente proporcional à sobrevida. O início da terapêutica após o quinto dia de sintomas já é associado a um aumento de mortalidade em relação ao início precoce (22,9% contra 6,5%)!

Por esse motivo, suspeita de febre maculosa = tratamento empírico para febre maculosa

Há apenas duas possibilidades terapêuticas para a doença: as Tetraciclinas, com destaque para a Doxiciclina, e o Cloranfenicol.

A primeira escolha sempre serão as Tetraciclinas, devido a sua maior eficácia. A recomendação é Doxiciclina 100 mg duas vezes ao dia. O único tratamento alternativo conhecido é o Cloranfenicol, que pode ser feito na dose de 50 mg/Kg/dia dividido em quatro doses diárias, porém é menos efetivo, sendo reservado apenas para os casos de reação adversa grave à Doxiciclina ou quando seu uso realmente não é possível.

Não existe muita evidência em relação ao tempo de tratamento da doença, porém é recomendado um período mínimo de sete dias, com pelo menos três dias de tratamento completos após o paciente ter se ficado afebril.

Não existe recomendação de antibioticoterapia profilática após exposição a carrapatos.

É isso, pessoal!

Espero que tenham gostado do post e que ele tenha clareado um pouco os conhecimentos sobre essa enfermidade incomum, mas que vez ou outra cai em prova ou é suspeitada num paciente com febre sem definição etiológica.

Não se esqueçam de deixar seus comentários e dúvidas aqui embaixo! Será um prazer respondê-los.

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Até a próxima!

Referências

1- Del Fiol FS, Junqueira FM, Rocha MCP, Toledo MI, Barberato Filho S. A febre maculosa no Brasil. Rev Panam Salud Publica. 2010;27(6):461–6

2- Araújo, Rachel Paes de. Navarro, Marli Brito Moreira de Albuquerque. Cardoso, Telma Abdalla de Oliveira. Febre maculosa no Brasil: estudo da mortalidade para a vigilância epidemiológica. Cad. Saúde Colet., 2016, Rio de Janeiro, 24 (3): 339-346

3- Sexton MD, Daniel J. McClain, MD, PhD, Micah T. – Biology of Rickettsia rickettsii infection.  UpToDate. 2021. Disponível em: < https://www.uptodate.com/contents/biology-of-rickettsia-rickettsii-infection >. Acesso em: 07/10/2021

4- Sexton MD, Daniel J. McClain, MD, PhD, Micah T. – Clinical manifestations and diagnosis of Rocky Mountain spotted fever.  UpToDate. 2021. Disponível em: < https://www.uptodate.com/contents/clinical-manifestations-and-diagnosis-of-rocky-mountain-spotted-fever >. Acesso em: 07/10/2021

5- Sexton MD, Daniel J. McClain, MD, PhD, Micah T. – Treatment of Rocky Mountain spotted fever.  UpToDate. 2021. Disponível em: < https://www.uptodate.com/contents/treatment-of-rocky-mountain-spotted-fever >. Acesso em: 07/10/2021

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LarissaMenezes

Larissa Menezes

Nascida em Franca/SP, em 92, formou-se em medicina pela PUC-Campinas, em 2018. Especialista em Clínica Médica pela UNICAMP e completamente apaixonada por essa área cheia de detalhes e interpretações. Filha de professora e de um ávido leitor, cresceu com muito amor pelo ensino também, unindo essa paixão à medicina.