Isolamento social: única medida contra a Covid-19?

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Fala, pessoal! Tudo em cima? Hoje vamos falar sobre o isolamento social contra a covid-19 e saber se essa é a única medida contra a doença. Esse é um assunto muito importante, principalmente porque os casos estão aumentando e atitudes devem ser tomadas para controlar o contágio. 

O isolamento social em meio à pandemia de Covid-19: saiba mais
O isolamento social em meio à pandemia de Covid-19: saiba mais

Bora lá? 

Fenômeno epidêmico

Antes de mais nada, vamos aqui seguir passo a passo para você entender o que leva a epidemiologia a ter o distanciamento social como ferramenta de controle de epidemias e pandemias.

Todo fenômeno contagioso (incluindo pandemias) é um fenômeno de crescimento exponencial e que, depois de determinado momento, começa naturalmente a decrescer. Portanto, se não fizermos nada, naturalmente uma epidemia tende a desaparecer: o fenômeno epidêmico alcança um pico que tende a cair sempre. 

Imunidade de rebanho: quando uma epidemia começa a cair?

Se nada for feito e deixarmos o curso natural de uma epidemia acontecer, teremos o que se chama de imunidade de rebanho: as pessoas vão ficando doentes, alguns morrem (e saindo da população, seus dados estatísticos como pessoas contaminadas e vivas também saem) e aqueles que se recuperam vão ficando imunes.

No momento em que se atinge uma quantidade de pessoas imunes, começa-se a ter um menor número de novos doentes, mais até do que o número de pessoas que vão ficando curadas.

Em outras palavras, quando tivermos mais doentes do que pessoas que se curam, existirão menos novos casos a cada ciclo, e assim o ciclo epidêmico vai minguando até se extinguir. 

Mas qual é o problema com a imunidade de rebanho?

Essa é uma ferramenta caso boa caso estivéssemos falando de um rebanho animal, por exemplo: o agricultor deixa acontecer, os contaminados morrem, os vivos ficam imunes.

O problema de utilizar isso numa população de humanos é que, para conseguir controlar a epidemia, deixando que a imunidade natural a controle, um grande número de pessoas terá de adoecer. Tudo isso, consequentemente, aumentará o número de mortes, sobretudo quando estivermos falando de COVID-19.

Uma epidemia começa a cair quando o número de reprodução de casos (R) (que é a base de uma função matemática exponencial) fica < 1.

Por que com a COVID-19 é diferente?

Essa pandemia que nos assola tem sua característica: embora a taxa de letalidade seja relativamente pequena, pela grande quantidade de infectados, há um número absoluto muito grande de mortes. Portanto, a imunidade de rebanho não é uma boa ideia para conseguir controlar uma pandemia entre seres humanos, a melhor forma é ter uma vacina. Por que?

Antes, vamos ver uma fórmula que existe para saber quantas pessoas precisam ficar imunes naturalmente para que se comece a controlar uma epidemia: 

1 – (1 ÷ R) (onde R é número de reprodução)

Se tivermos um número de reprodução de 2 para uma determinada doença epidêmica, teremos: 

1 – (1 ÷ 2) = 0,5 (em porcentagem, multiplicamos por 100). 

Portanto, precisaríamos 50% da população imune que haja o controle da epidemia. Mas quando falamos de COVID-19, não se pode deixar que essas pessoas sejam infectadas naturalmente pelo grande número de mortes que isso geraria. Assim, que tal fornecermos uma imunidade artificial?

Hoje sabemos que o número de reprodução do coronavírus é em torno de 5, então, tem-se: 

1 – (1 ÷ 5) = 0,8

Significa que precisamos ter 80% das pessoas imunizadas para que haja o controle da epidemia de coronavírus. Ou seja, 80% das pessoas teriam que se contaminar para conseguirmos controlar essa epidemia, o que causaria uma grande quantidade de mortes. 

Dessa forma, o objetivo não é conseguir imunidade natural do tratamento, e esse é um dos motivos que levam algumas pessoas a criticar o distanciamento social, pois este último não estaria permitindo que as pessoas fiquem imunes naturalmente.

Imunidade artificial

No caso da COVID-19, o objetivo não é criar imunidade natural, pois isso acabaria (e ainda está) matando muitas pessoas. O objetivo é diminuir o número de pessoas doentes cuja gravidade levaria à morte

Mas concordamos que, para podermos diminuir a mortalidade, devemos não somente reduzir o número de mortes em doentes (até porque conseguimos diminuir o número de pessoas doentes até um certo ponto, por inúmeras razões). Mas o que, então, podemos agregar à imunidade artificial para darmos cabo à pandemia? 

A resposta é: diminuir o número de contágios!

Isolamento social como parte de ação sanitária

Outra estratégia mais eficaz, pensando em evitar mortes pelo contágio da doença, seria diminuir o número de reprodução e transmissão sem precisar causar imunidade, impedindo o contato entre as pessoas o quanto for possível. 

É fácil compreender, veja bem: se estamos falando de uma doença que é transmitida por um animal, as autoridades podem, por exemplo, parar a transmissão eliminando ou afastando vetor (estará-se distanciando o vetor da população).

Agora, ao falarmos de coronavírus, estamos falando de uma doença que uma pessoa transmite para outra. Em linhas gerais, qualquer um pode ser o “vetor”. Logo, há que se distanciar os vetores até que o ciclo da doença se encerre dentro dele (e com a vacinação, sem causar mortes, pensando na imunidade conferida artificialmente). Viu como uma medida complementa a outra? 

Lembra que, para que se comece a controlar uma epidemia, o R deverá ser < 1? E se lembra da fórmula para saber quantas pessoas precisam ficar imunes naturalmente para que se comece a controlar uma epidemia? 

Distanciando as pessoas, conseguimos diminuir o R para ≤ 1, se o distanciamento for bem-feito. Isso faz com que a epidemia morra antes de se ter uma grande quantidade de pessoas doentes.

Esse conceito todo é importante, pois a humanidade não pode se dar ao luxo de deixar a imunidade de rebanho controlar a pandemia. Os que ainda defendem a imunidade rebanho argumentam que, na estratégia de distanciamento social, as pessoas não vão ficar imunes então a doença vai voltar. Isso não é verdade, pois o objetivo do distanciamento, como estratégia adjunta à vacinação, não é imunizar as pessoas, mas sim parar a epidemia através do distanciamento. 

Isolamento social e suas consequências 

Setores da política, economia, sociedade civil e uma pequena parcela de entidades médicas questionam o isolamento social sob dois principais aspectos, seja por desconhecer o risco de se substituí-lo pela imunidade de rebanho, seja pelo impacto econômico e social que ele causa. 

Sobre a primeira preocupação, já a abordamos bastante. Mas e os impactos negativos que o isolamento poderia causar? Para abordar esse tema, temos que falar um pouco sobre eficácia, efetividade e eficiência (que é o custo-efetividade de alguma medida). 

Eficácia do isolamento social

Eficácia nada mais é do que uma propriedade intrínseca benéfica de uma intervenção. E é muito compreensível que a população tenha dificuldades em entender isso pois ainda não conseguimos fazer um saio clínico randomizado entre lugares que promoveram e entre lugares que não promoveram um distanciamento social, para termos uma comprovação empírica (apesar de termos publicações demonstrando resultados antes e depois da aplicação de medidas de isolamento como em Araraquara e Bauru, p.e.).

Porém, o distanciamento social entra no paradigma da plausibilidade extrema que são aquelas situações tão óbvias, mas tão óbvias, que seria até antiético a realização de um ensaio clínico, no caso deixando uma cidade realizar o isolamento e outra não para ver o que acontece (esse paradigma não é exclusivo no ambiente de infectologia mas qualquer fenômeno contagioso se você quebra a ligação entre as pessoas em rede esse contágio desaparece). É plausível que as pessoas não entendam que isso seja óbvio, pois existe uma confusão entre eficácia e efetividade. 

Efetividade do isolamento social

Falando sobre efetividade é preciso demonstrar para a população que a eficácia do isolamento acontece! E para a população enxergar isso no mundo real temos que ter algum resultado verdadeiro do distanciamento social, alguma efetividade, mas para isso ele tem que ser realmente realizado. Só que quando a comunidade acadêmica, política, civil etc  ficam questionando a eficácia em um diálogo com a população a inefetividade se torna uma “profecia auto-realizável”: ignorando o princípio da plausibilidade extrema, eu digo a população que o distanciamento social não funcionam, que mortem vão ocorrer do mesmo jeito (e elas estavam ocorrendo no auge dessa discussão), a população não vai aderir devidamente ao distanciamento social então a profecia que o isolamento é ineficaz vai se realizar. 

Então essa atividade depende da população entender a magnitude do problema e de entender que se o distanciamento social foi realmente feito essa eficácia terá um efeito extrínseco de efetividade! 

Eficiência do isolamento

Outro ponto interessante, e talvez o mais polêmico e mal compreendido, é sobre eficiência, que remete ao custo-efetividade. Supondo que a comunidade científica e outras entidades civis tenham uma boa comunicação com a população e que o distanciamento tenha, de fato, ocorrido além do esperado. No entanto, como fica o lado negativo do distanciamento? Ele é composto, justamente, pelo impacto econômico e pelas consequências não intencionais do distanciamento. 

Vamos então fazer uma análise de custo-efetividade do distanciamento baseado nessas questões… Não há como se comparar as estratégias de salvar pessoas vs salvar a economia, pois são duas estratégias que podem concorrer uma com a outra. Temos que pensar racionalmente no isolamento: a estratégia do distanciamento social ser nossa efetividade e a questão econômica como o custo dessa estratégia. Teremos, então, uma análise de custo-efetividade.

O benefício da estratégia de distanciamento social é o de reduzir mortes por coronavírus e o custo da estratégia é a recessão. No entanto, muitos estudos já comprovaram que há uma associação por si só entre momentos de recessão de um país (sem ser por pandemias) e o aumento da mortalidade na população. 

Portanto, em um momento de recessão causado pela pandemia, que afeta todo o globo, as mortes têm seu componente na causa da contaminação em si e pela recessão econômica de forma isolada também. 

Ninguém vai questionar que queremos impedir a morte de pessoas, mas o que traz ou o que traria mais mortes? A dúvida seria se o isolamento estaria causando mais mortes por conta da recessão econômica e diminuição da qualidade de vida do que salvando mais vidas que poderiam ser perdidas pela infecção pelo COVID. 

Isolamento é um benefício direto!

Pelo princípio da racionalidade, o benefício da prevenção de mortes por COVID-19 é um benefício direto, pois se impede que alguém morra disso. Já o malefício, o aumento das mortes por recessão econômica e seu custo é um malefício indireto, precisa acontecer uma cascata de eventos para que ela ocorra (economia já fragilizada, tipo de economia vigente, falta de sistema de saúde estruturado, condições sociais prévias já bastante vulneráveis, etc).

Os eventos acima, por sua vez, já vinham ocorrendo antes da pandemia e podem ser piorados por políticas públicas (ou falta de), portanto, há mais incerteza quanto a esse malefício do que certezas do efeito do benefício. 

Reflexão final: isolamento social pra quem?

Vale a reflexão de que se pensarmos no distanciamento social como uma medicação, essa medicação faz sentido até um certo ponto, e esse ponto em diante, como toda droga, pode vir a trazer mais malefícios do que benefícios. 

Portanto, a dose desse distanciamento social deve ser customizada para o momento da pandemia e deve ser customizada para região que você está falando naquele sentido. A Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade (SBMFC) abordou esse tema neste manual, em que o distanciamento social é abordado segundo a realidade das favelas, periferias e populações vulneráveis. 

Assim, a dose do isolamento social deve ser bem planejada, encarada como medida de saúde pública e de contenção, sendo parte de uma estratégia de erradicação de epidemias, feita de forma séria para que desfrutemos do maior benefício e tenhamos o menor custo!

É isso!

Bom, pessoal, é isso! Falamos bastante sobre o isolamento social no artigo de hoje. Ficou com alguma dúvida acerca do assunto? Deixe um comentário aqui embaixo, será um prazer respondê-lo.

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Referências

MEYEROWITZ-KATZ, Gideon et al. Is the cure really worse than the disease? The health impacts of lockdowns during COVID-19. BMJ Global Health, On-line, v. 6, ed. 8, 2021. DOI http://dx.doi.org/10.1136/bmjgh-2021-006653. Disponível em: https://gh.bmj.com/content/6/8/e006653. Acesso em: 23 jan. 2022.

HSIANG, Solomon et al. The effect of large-scale anti-contagion policies on the COVID-19 pandemic. Nature, [S. l.], ano 2020, v. 584, p. 262-267, 8 jun. 2020. DOI https://doi.org/10.1038/s41586-020-2404-8. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41586-020-2404-8#citeas. Acesso em: 23 jan. 2022.

CENTER FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. COVID-19: Quarantine and Isolation. In: CENTER FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION. COVID-19: Quarantine and Isolation. On-line, 20 jan. 2022. Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/your-health/quarantine-isolation.html. Acesso em: 23 jan. 2022.

BBC NEWS BRASIL (Londres) (ed.). Araraquara X Bauru: dois retratos do Brasil com e sem lockdown contra a covid-19. In: ALEGRETTI, Laís (ed.). Araraquara X Bauru: dois retratos do Brasil com e sem lockdown contra a covid-19. On-line, 8 abr. 2021. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-56640000. Acesso em: 23 jan. 2022.
GRUPO DE TRABALHO DE SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE MEDICINA DE FAMÍLIA E COMUNIDADE. Associação de Medicina de Família e Comunidade do Rio de Janeiro. Orientações para favelas e periferias. 2. ed. atual. On-line: [s. n.], 2020. 43 p. Disponível em: https://www.sbmfc.org.br/wp-content/uploads/2020/05/orientações-para-favelas-e-periferias_2edição_Versãofinal.pdf. Acesso em: 23 jan. 2022.

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BrunoGuerretta Belmonte

Bruno Guerretta Belmonte

Nascido em Santo André, médico formado pela UNESP e pela Brock University (Canadá) em 2017 e Médico de Família e Comunidade pela SMS do Rio de Janeiro em 2021. Apaixonado pelos tablados da sala de aula e aficcionado por aviões. Para mim, como escreveu Clarice, “ Liberdade é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome.”