Metformina: a queridinha no tratamento do diabetes

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Não precisamos nem falar que o diabetes melito é uma das doenças mais importantes da medicina na atualidade. Por isso, hoje o assunto de hoje é o tratamento da doença com metformina, a queridinha quando se trata desse assunto.

A diabete é caracterizada pela deficiência absoluta ou relativa na secreção de insulina, associada a graus variados de resistência periférica à ação da insulina, levando à hiperglicemia e suas consequências crônicas: lesões microvasculares (retinopatia, nefropatia e neuropatia) e macrovasculares (aumento do risco de aterosclerose e suas consequências).

A doença é dividida principalmente em diabetes tipo 1 e diabetes tipo 2, sendo muito mais frequente o tipo 2(> 95% dos casos). Estima-se que o diabetes tipo 2 afete 537 milhões de pessoas no mundo, com uma prevalência global de 10,5% entre adultos de 20-79 anos. 

Logo,  independente de qual especialidade você seguirá, você vai se deparar com múltiplos pacientes diabéticos em sua vida médica e isso justifica um estudo mais aprofundado desta doença, sua fisiopatologia, tratamento e complicações.

O foco desse post vai ser destrinchar detalhes a respeito da metformina, a droga de primeira escolha no tratamento do diabetes tipo 2. 

Apesar dos avanços das últimas 2 décadas, com novas drogas sensacionais surgindo e com múltiplos benefícios, nenhuma delas foi capaz de tirar o posto da metformina de droga de 1ª escolha no diabetes tipo 2, tamanho é o seu efeito benéfico no controle glicêmico desses pacientes. 

Neste material vamos falar sobre os aspectos que frequentemente são esquecidos em relação à metformina: o mecanismo de ação, suas interações medicamentosas, efeitos adversos e contraindicações.

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Para compreendermos completamente seus mecanismos de ação, vamos apenas relembrar alguns aspectos da fisiopatologia do diabetes tipo 2. Vamos lá!

Fisiopatologia do diabetes tipo 2

A diabetes tipo 2 tem uma fisiopatologia complexa, que envolve tanto fatores genéticos, quanto ambientais. Resumidamente, o cerne do mecanismo da doença é o aumento progressivo da resistência à insulina nos tecidos insulina-sensíveis (fígado, músculo esquelético e tecido adiposo).

A insulina é um hormônio polipeptídico com funções anabólicas, ou seja, de armazenamento de nutrientes. Ela exerce suas funções através do estoque de carboidratos (principalmente na forma de glicogênio – glicogênese), gorduras (lipogênese) e proteínas. 

Em termos de fisiologia endócrina, níveis aumentados de glicose sérica estimulam a secreção de insulina pelas células β pancreáticas. A insulina vai agir nos tecidos sensíveis (músculo, tecido adiposo e fígado) que, por sua vez, vão aumentar a expressão de transportadores de glicose transmembrana (chamados de canais GLUT4), estimulando a captação de glicose pelos tecidos. 

Observe na figura a seguir um esquema bem resumido da regulação da homeostase da glicose:

Regulação da homeostase da glicose. Fonte: Harrison’s Principles of Internal Medicine, 19ed.

E no diabetes tipo 2, o que acontece?

Basicamente há um aumento progressivo da resistência à insulina. É como se os tecidos não respondessem mais aos mesmo níveis de insulina e, portanto, não fossem “sinalizados” dos níveis aumentados de glicose sérica. 

Logo, a captação de glicose pelos tecidos estará reduzida e o paciente ficará em um estado de hiperglicemia + hiperinsulinismo, afinal, a insulina ainda é secretada, porém só não é “percebida”. 

Portanto, sobrevém um estado de catabolismo, com proteólise, lipólise e glicogenólise. Por esse motivo pensamos em diabetes descompensada quando o paciente refere perda ponderal não motivada.

Além disso, devido à resistência hepática à ação da insulina, há estímulo para a gliconeogênese hepática, processo pelo qual o fígado consome aminoácidos (proveniente do catabolismo proteico), lactato e ácidos graxos (provenientes do catabolismo lipídico) para gerar glicose, piorando ainda mais a hiperglicemia e o emagrecimento.

Com o passar do tempo, a hiperglicemia cronicamente aumentada pode levar à disfunção das células β e hipoinsulinismo, processo denominado glicotoxicidade. Confira na figura a seguir um esquema desse processo:

Mecanismos de ação da Metformina

A metformina é um medicamento antidiabético oral da classe das biguanidas, sendo o único atualmente comercializado no Brasil dessa classe. Ela exerce um efeito proeminente na melhora do controle glicêmico (⬇ HbA1C 1-2%) por meio de 3 mecanismos:

  • redução da produção hepática de glicose (principal – 75% da sua ação);
  • redução da resistência insulínica em músculo e adipócitos (em menor escala);
  • efeito antilipolítico.

Seu principal efeito é inibir a gliconeogênese hepática e, portanto, reduzir a produção hepática de glicose. Além disso, pelo seu efeito antilipolítico, reduz a biodisponibilidade de glicerol e ácidos graxos para a gliconeogênese. 

Soma-se a isso o fato da metformina reduzir a resistencia insulínica dos tecidos periféricos (músculos, adipócitos) ao estimular que mais canais GLUT4 sejam inseridos na membrana plasmática destas células, melhorando a utilização de glicose por esses tecidos. Todos esses efeitos levam à redução da hiperglicemia.

A metformina suprime a gliconeogênese hepática por inibir uma glicerofosfato desidrogenase mitocondrial, uma enzima que é responsável pela conversão de glicerofosfato em fosfato de diidroxiacetona. 

Dessa maneira, a droga age inibindo que o glicerol participe como substrato da gliconeogênese. Além disso, essa inibição leva ao acúmulo de NADH no citoplasma e reduz a conversão de lactato em piruvato, também limitando a disponibilidade de lactato como substrato da gliconeogênese. 

Porém, como veremos mais à frente, como o lactato não é utilizado para gliconeogênese, ele é liberado para o plasma em maiores quantidades e, portanto, pode levar á um dos efeitos colaterais mais temidos e conhecidos da metformina: a acidose lática.

Agora perceba um detalhe: a metformina não tem ação pancreática alguma. Ela atua apenas na resistência periférica e na produção hepática de glicose. Conclui-se, portanto, que diabéticos tipo 1 não se beneficiam dessa droga, pois o problema no diabetes tipo 1 é justamente a ausência ou redução muito importante na produção pancreática de insulina! 

Porém cuidado: existem casos de exceção em diabéticos tipo 1 com sinais francos de resistência periférica à insulina em que podemos inclusive associar a metformina à terapia insulínica, mas ela NUNCA será o pilar do tratamento como no diabetes tipo 2.

A metformina não possui metabolização hepática e apresenta excreção renal, aumentando seus níveis plasmáticos com a queda progressiva da taxa de filtração glomerular. 

A dose inicial é de 500-1000 mg, sempre junto com as refeições, sendo que a dose máxima recomendada é de 2000-2550 mg/dia.

Efeitos adversos da Metformina

PRINCIPAIS EFEITOS ADVERSOS DA METFORMINA
Sintomas gastrintestinais (+ comuns)
Deficiência de vitamina B12
Acidose lática
Efeitos adversos da Metformina. Fonte: adaptado de Vilar,Lúcio – Endocrinologia Clínica, 5ª edição, 2013.

No geral, a metformina é uma droga extremamente segura e bem tolerada. Porém, não é livre de efeitos colaterais:

Os sintomas gastrointestinais são de longe os mais comuns, acometendo até 20% dos pacientes em uso. São extremamente variáveis dentro de um espectro de anorexia, náuseas, dor abdominal e diarreia, todos leves e transitórios.

São mais comuns quando o paciente ingere a medicação com o estômago vazio e, portanto, esse é o motivo de sempre orientarmos a ingestão junto com os alimentos. 

Sempre iniciamos o tratamento em doses baixas, com progressão semanal conforme a tolerância. Além disso, existem hoje em dia de forma acessível as formulações com liberação estendida (“XR”), em que há menor taxa de efeitos colaterais gastrintestinais.

A metformina pode reduzir a absorção intestinal de vitamina B12 no íleo distal em até 30% dos pacientes, porém apenas 5% – 10% vão desenvolver deficiência da vitamina. O risco aumenta conforme a dose e o tempo de uso e, portanto, é recomendado monitorar níveis séricos de vitamina B12 em usuário de metformina.

A acidose lática é o efeito colateral mais temido e, felizmente, extremamente raro, acometendo menos de 1 caso a cada 100.000 pacientes tratados com a droga. Porém, apresenta alta mortalidade, chegando até 42%. O mecanismo é aquele que mencionamos no tópico anterior.  

É mais comum em pacientes que fazem uso abusivo de álcool concomitante e nos pacientes que desenvolvem insuficiência renal.

Por medo desse efeito colateral, orientamos a suspensão de metformina em pacientes internados, pois nesse contexto há maior probabilidade de evoluir com insuficiência renal (exames contrastados, infecções, procedimentos cirúrgicos, etc) e acidose lática.

Efeitos colaterais extremamente raros, porém já registrados, são hepatite colestática, anemia hemolítica em paciente com deficiência de G6PD ou reações de hipersensibilidade cutânea. Por não atuar na secreção pancreática de insulina, a metformina não leva à hipoglicemia!

Contraindicações à metformina

As condições que aumentam o risco de acidose lática estão entre as contraindicações do uso de metformina. Confira na tabela a seguir:

CONTRAINDICAÇÕES À METFORMINA
Insuficiência renal (ClCr < 30 ml/min/1,73 m²) 
Insuficiência hepática grave (Child B ou C)
Etilismo
Insuficiência cardíaca descompensada
Doenças agudas graves (Ex: sepse)
Contraindicações à metformina. Fonte: adaptado de Vilar, Lúcio – Endocrinologia Clínica, 5ª edição, 2013.

As contraindicações mais importantes são a insuficiência renal e hepática graves. 

Alguns autores reduzem a dose de metformina para 1g/dia nos pacientes que apresentam ClCr entre 30ml – 44 ml/min/1,73 m², porém isso ainda não é um consenso na literatura.

Além disso, é recomendado a suspensão da metformina 24-48 horas antes de algum procedimento cirúrgico de médio/grande porte ou exame contrastado, pelo risco de desenvolvimento de acidose lática.

Interações medicamentosas da Metformina

Felizmente, a metformina é um droga muito bem tolerada e com poucas interações medicamentosas. A interação mais comum é com a cimetidina (pouco utilizada nos dias de hoje), droga que pode aumentar os níveis séricos de metformina em até 40%.

Também recomenda-se evitar o uso de álcool concomitantemente, pelo risco de acidose lática aumentado nesses pacientes. Não é exatamente uma interação medicamentosa, mas uma recomendação de cautela com o uso de diuréticos em pacientes em tratamento com metformina. 

Não apenas os diuréticos, mas qualquer condição que possa levar a hipovolemia (diarreia volumosa, desidratação extrema, vômitos em grande quantidade) pode aumentar o risco de insuficiência renal e acúmulo de metformina, com suas consequências tóxicas.

Portanto, orientamos os pacientes a interromper o uso momentaneamente caso alguma dessas intercorrências aconteça.

É isso!

Ufa, acabamos! Apesar de parecer um pouco aprofundado demais, existem drogas que são tão frequentemente prescritas aos nossos pacientes que torna-se importante conhecer um pouco mais sobre esses aspectos de farmacologia que esquecemos com frequência. 

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Pra cima!

Referências bibliográficas

  1. VILAR, Lúcio – Endocrinologia Clínica, 5ª edição, 2013.
  2. BRUNTON, L. L. (Org.); CHABNER, B. A. KNOLLMANN, B. C.As Bases

Farmacológicas da Terapêutica de Goodman & Gilman. 12. ed. Porto Alegre: AMGH, 2012.

  1. Wexler, DJ.(2022) Metformin in the treatment of adults with type 2 diabetes mellitus. In DM, Nathan (Ed.), K. Rubinow (Ed.). UpToDate.

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