Anemia Ferropriva: tudo o que você precisa saber!

Conteúdo / Medicina de Emergência / Anemia Ferropriva: tudo o que você precisa saber!

A anemia ferropriva nada mais é do que a boa e velha falta de ferro levando à queda na produção de hemoglobina. E sem hemoglobina, como bem sabemos, o transporte de oxigênio fica comprometido. Por isso, não surpreende ser a anemia mais comum no mundo todo, representando cerca de metade dos casos globais de anemia.

Para se ter ideia da dimensão do problema, mais de 1,2 bilhão de pessoas sofrem com essa condição no mundo. No Brasil, o cenário não é muito diferente: até 2022, cerca de 3 milhões de crianças abaixo dos 5 anos já haviam sido diagnosticadas com anemia ferropriva. 

Os grupos mais vulneráveis são aqueles em fases de alta demanda de ferro ou com maior risco de perda: lactentes, crianças pequenas, adolescentes, mulheres em idade fértil (especialmente as gestantes) e idosos.

No organismo, o ferro cumpre funções essenciais, com a maior parte (cerca de 60-70%) incorporada na hemoglobina. Além disso, cerca de 10% está na mioglobina, enquanto 20 a 30% ficam estocados, principalmente no fígado, medula óssea e baço. Uma fração menor, cerca de 1%, participa de diversas reações enzimáticas celulares. 

Agora, para entendermos mesmo essa condição, precisamos entender um pouquinho melhor o metabolismo do ferro! Bora lá?

Absorção, transporte e regulação do ferro

A absorção do ferro ocorre principalmente no duodeno e no jejuno proximal. A dieta fornece o mineral sob duas formas: ferro heme e não-heme. O ferro heme, presente nas carnes, tem excelente absorção, variando de 20 a 30%. Já o ferro não-heme, encontrado nos vegetais, é bem menos biodisponível, sendo absorvido em apenas 1 a 10% dos casos. 

A conversão do ferro férrico (Fe³⁺) para ferroso (Fe²⁺), mediada pelo ácido gástrico e pela vitamina C, é um passo indispensável para sua absorção. Uma vez absorvido, o ferro circula ligado à transferrina, proteína hepática cuja síntese aumenta quando os níveis de ferro estão baixos, num esforço de captação compensatória.

O controle fino desse sistema é feito pela hepcidina, um hormônio também produzido no fígado. Em situações de estoque adequado ou em estados inflamatórios, a hepcidina aumenta e inibe tanto a absorção intestinal quanto a liberação de ferro estocado pelos macrófagos. Já quando o organismo percebe deficiência de ferro, a produção de hepcidina diminui, facilitando o acesso ao mineral.

Mas, e a deficiência?

A deficiência de ferro se desenvolve progressivamente em estágios:

Estágio 1: Depleção dos estoques

  • Ferritina sérica reduzida (< 20 ng/mL).
  • Hemoglobina e ferro sérico normais.

Estágio 2: Eritropoiese deficiente

  • Saturação de transferrina reduzida (< 16%).
  • Ferro sérico reduzido (< 50 μg/dL).
  • Transferrina sérica aumentada (> 8,5 mg/dL).

Estágio 3: Anemia instalada

  • Hemoglobina reduzida.
  • Manifestações clínicas podem surgir.

Estágio 4: Microcitose e hipocromia

  • VCM e HCM reduzidos.
  • RDW aumentado (anisocitose).

Estágio 5: Manifestações clínicas evidentes

Certo! Entendi… E por que temos anemia ferropriva?

As causas são variadas, mas podemos agrupá-las de maneira prática. 

Perdas sanguíneas

No trato gastrointestinal, destacam-se úlceras pépticas, neoplasias, doenças inflamatórias intestinais, parasitoses e hemorróidas. Entre as mulheres, perdas ginecológicas como menorragia, metrorragia e endometriose são frequentes. 

Há ainda perdas urinárias crônicas (como na esquistossomose e glomerulonefrites), além das perdas iatrogênicas em doadores frequentes de sangue ou em quem realiza muitos exames laboratoriais. 

Má absorção

Já a má absorção de ferro ocorre em doenças como celíaca, gastrite atrófica, infecção por H. pylori, cirurgia bariátrica e uso prolongado de antiácidos, inibidores de bomba de prótons ou bloqueadores H₂.

Aumento da demanda

As demandas aumentadas de ferro surgem em períodos de crescimento rápido, como infância e adolescência, bem como durante a gestação e lactação. Prematuros e recém-nascidos com baixo peso ao nascer também entram nesse grupo. 

Ingesta insuficiente

Por fim, dietas restritivas (vegetarianas/veganas), desnutrição, aleitamento exclusivo prolongado e consumo excessivo de leite de vaca em crianças pequenas também podem contribuir. 

Idiopática

Em alguns casos, mesmo após investigação, a causa permanece não identificada, caracterizando a deficiência idiopática.

E os sinais e sintomas?

Clinicamente, a anemia ferropriva pode se desenvolver de forma insidiosa, permitindo adaptações que mascaram os sintomas iniciais. À medida que a anemia progride, o paciente pode referir fadiga, fraqueza, dispneia aos esforços, palpitações, tontura, cefaleia, irritabilidade e até intolerância ao frio. 

Alguns sintomas são mais específicos, como a pagofagia (vontade de comer gelo), a picofagia (ingerir substâncias não alimentares como terra, argila e tijolo) e a síndrome das pernas inquietas, com desconforto nos membros inferiores durante o repouso noturno.

Ao exame físico, chamam atenção sinais e sintomas compatíveis com ANEMIA: palidez cutâneo-mucosa, taquicardia… Mas, existem sinais de carência nutricional: coiloníquia (unhas em colher), queilite angular (rachaduras nos cantos da boca) e glossite atrófica (língua lisa e brilhante). 

Coiloníquia

Queilite angular

Glossite atrófica

Em crianças, o quadro pode comprometer o desenvolvimento neurocognitivo, a atenção e a aprendizagem, além de aumentar a suscetibilidade a infecções. 

Nas gestantes, a anemia ferropriva está associada a maior risco de parto prematuro, baixo peso ao nascer e elevação da morbimortalidade materna e perinatal.

Como diagnosticar?

O diagnóstico da anemia ferropriva baseia-se na associação de história clínica, exame físico e exames laboratoriais. Os critérios diagnósticos de anemia, segundo os níveis de hemoglobina, são: menos de 13 g/dL em homens; menos de 12 g/dL em mulheres não gestantes; menos de 11 g/dL em gestantes; e valores variando entre 11 e 12 g/dL nas diferentes faixas etárias pediátricas.

O hemograma revela hemoglobina e hematócrito reduzidos, VCM inferior a 80 fL (microcitose), HCM abaixo de 27 pg (hipocromia), RDW aumentado (> 14,5%) e contagem de reticulócitos normal ou baixa. 

Perfil do ferro – a estrela da noite!

O perfil de ferro, na anemia ferropriva, como bem poderíamos esperar, é fundamental! Inclusive para diagnósticos diferenciais. Os achados são:

  • Ferro sérico reduzido (< 50 μg/dL);
  • Ferritina sérica reduzida (< 30 ng/mL) – marcador mais sensível da depleção dos estoques;
  • Capacidade total de ligação do ferro (CTLF) aumentada (> 350 μg/dL);
  • Saturação de transferrina reduzida (< 16%).

Portanto, na diferenciação com outras anemias microcíticas, o perfil laboratorial é fundamental (e essa diferenciação vale pra vida e pras provas, viu?). Vamos entender melhor essas diferenças.

Enquanto a ferritina está baixa na ferropriva, ela costuma ser normal ou aumentada na talassemia e na anemia de doença crônica (já que é uma proteína de fase aguda também). 

O ferro sérico também é baixo na ferropriva e na doença crônica, mas tende a ser normal ou alto na talassemia. 

A CTLF (capacidade total de ligação ao ferro) fica elevada na ferropriva (se pensarmos na transferrina – proteína responsável pelo transporte do ferro, a CTFL são quantos lugares disponíveis existem – como aqui, na anemia ferropriva, há pouco ferro, há muitos lugares disponíveis, certo?), normal na talassemia e normal ou baixa na doença crônica. Já a saturação de transferrina (quantos lugares estão efetivamente ocupados pelo ferro) cai na ferropriva e na doença crônica, mas se mantém normal ou elevada na talassemia. 

O RDW é elevado na ferropriva, normal na talassemia (sendo essa a principal diferença entre essas duas) e variável na doença crônica. E a resposta ao ferro, como esperado, é boa na ferropriva, ausente na talassemia e parcial na doença de base inflamatória.

ParâmetroAnemia FerroprivaTalassemiaAnemia de Doença Crônica
FerritinaBaixaNormal/AltaNormal/Alta
Ferro séricoBaixoNormal/AltoBaixo
CTLFAltaNormalBaixa/Normal
Sat. transferrinaBaixaNormal/AltaBaixa
RDWAltoNormalNormal/Alto
Resposta ao ferroBoaAusenteParcial

Confirmado o diagnóstico, a investigação da etiologia é etapa obrigatória. A pesquisa de perdas digestivas pode incluir sangue oculto nas fezes, endoscopia alta e colonoscopia. As perdas ginecológicas são avaliadas pela história menstrual e, se necessário, por ultrassonografia pélvica. Em casos suspeitos de má absorção, é indicado solicitar sorologias para doença celíaca e investigação de H. pylori.

Boa! Bora tratar então!

O tratamento da anemia ferropriva tem dois objetivos centrais: 1) corrigir a causa subjacente e 2) repor os estoques de ferro. 

A via oral é preferencial na maioria dos pacientes. Entre os sais disponíveis, o sulfato ferroso (20% de ferro elementar), o gluconato ferroso (12%) e o fumarato ferroso (33%) são as opções mais utilizadas. A dose para adultos varia de 60 a 120 mg de ferro elementar por dia. Em crianças, recomenda-se de 3 a 6 mg/kg/dia (máximo de 60 mg/dia).

Para otimizar a absorção, orienta-se administrar o ferro em jejum ou pelo menos uma hora antes das refeições. Caso haja intolerância gástrica, pode-se associar o alimento, mesmo com absorção reduzida. A ingestão junto a sucos cítricos potencializa a absorção, enquanto antiácidos, café, chá preto, cálcio e alimentos ricos em tanino (como banana verde e caqui) devem ser evitados nas proximidades da administração. 

O tratamento deve ser mantido por 2 a 3 meses para corrigir a anemia e prolongado por 3 a 6 meses adicionais para reabastecer os estoques após normalização da hemoglobina. A resposta esperada é um aumento de 1 a 2 g/dL na hemoglobina após 3 a 4 semanas e uma elevação dos reticulócitos em 5 a 10 dias.

Ferro EV: pode?

A reposição parenteral de ferro está indicada nos casos de intolerância grave ao ferro oral, má absorção intestinal, doença inflamatória intestinal ativa ou necessidade de reposição rápida. Entre as preparações disponíveis, temos o sacarato de hidróxido férrico, a carboximaltose férrica, o ferro dextrano e o ferro isomaltosídeo. Apesar de efetivas, essas formulações podem causar reações de hipersensibilidade, hipotensão transitória, artralgia, mialgia, cefaleia e náuseas.

Melhor do que tratar, é prevenir!

Do ponto de vista preventivo, recomenda-se manter uma dieta rica em alimentos fonte de ferro heme, como as carnes vermelhas. Associar alimentos ricos em vitamina C durante as refeições ajuda na absorção do ferro não-heme. Deve-se evitar o consumo de café, chá e derivados de cálcio junto às principais refeições.

Durante a gestação, há necessidade de aproximadamente 800 a 1000 mg de ferro no total, motivo pelo qual se recomenda suplementação profilática de 30 a 60 mg/dia a partir do segundo trimestre, com monitoramento periódico da hemoglobina. Nos prematuros, a suplementação deve ser de 2 a 4 mg/kg/dia até o primeiro ano de vida e lactentes em aleitamento materno exclusivo devem iniciar 1 mg/kg/dia de ferro a partir dos 4 meses. 

Em crianças pequenas, deve-se limitar o consumo de leite de vaca a no máximo 500 mL/dia e introduzir alimentos ricos em ferro a partir dos 6 meses. Já nos idosos não existe recomendação de suplementação profilática: a investigação sempre deve incluir avaliação de perdas digestivas ocultas, considerar as interações medicamentosas e levar em conta comorbidades que afetem a absorção intestinal.

Em resumo, a anemia ferropriva é extremamente prevalente, mas facilmente corrigível com diagnóstico precoce e abordagem adequada. Fundamental é sempre buscar e tratar a causa subjacente. Uma vez feito isso, a resposta clínica e laboratorial costuma ser excelente.

Pronto! Agora você já sabe TUDO sobre a anemia ferropriva! Mas, não deixe de aprender mais e conferir novos conteúdos no blog da Medway!

Especificamente falando de anemias, não deixem de conferir alguns dos conteúdos abaixo:

Referências

  1. Sociedade Brasileira de Pediatria. Anemia ferropriva: Prevenção e tratamento. Guia Prático de Atualização, 2018.
  2. Camaschella C. Iron deficiency: new insights into diagnosis and treatment. Hematology Am Soc Hematol Educ Program. 2015;2015:8-13.
  3. Lopez A, Cacoub P, Macdougall IC, Peyrin-Biroulet L. Iron deficiency anaemia. Lancet. 2016;387(10021):907-916.
  4. World Health Organization. Iron deficiency anaemia: assessment, prevention and control: a guide for programme managers. Geneva: World Health Organization, 2001.

É médico e quer contribuir para o blog da Medway?

Cadastre-se
Larissa Menezes

Larissa Menezes

Professora da Medway. Formada pela PUC-Campinas, com Residência em Clínica Médica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).