Você já ouviu falar da hiperêmese gravídica? Bom, desde os tempos mais remotos, mulheres em idade reprodutiva que começam a apresentar enjoos e vômitos em momentos aleatórios são suspeitas de estarem gestantes. Qualquer novela que se preze já se baseou nesses sintomas para sugerir que uma personagem está grávida.
De fato, as náuseas e vômitos são sintomas extremamente comuns em gestações iniciais e, apesar de incomodarem um pouco, são controláveis e aceitáveis na maioria das vezes. Porém, algumas pacientes apresentam um exagero dessas queixas, necessitando de uma atenção especial e, inclusive, de hospitalização em algumas situações.
Mas e aí, quando podemos dizer que esses sintomas ultrapassaram a barreira do que consideramos normal para uma gestação? E o que podemos fazer para controlar essas alterações gastrointestinais e melhorar a qualidade de vida das nossas gestantes iniciais? Vamos ver tudo sobre a hiperêmese gravídica, o nome usado para descrever a condição em que esses sintomas são mais severos.
Em torno de 90% das gestantes apresentam náuseas ou a associação de náuseas e vômitos durante os primeiros meses da gravidez. Geralmente, os sintomas se iniciam entre a 5ª e 6ª semanas, com um pico na 9ª semana e redução gradativa até a 18ª semanas de gravidez.
Consideramos como hiperêmese gravídica quando esses sintomas são mais intensos, acompanhados de perda de peso (mais de 5% do peso corporal pré-gestacional), ansiedade, depressão e impacto nas atividades do dia-a-dia, chegando a levar algumas pacientes a cogitar a interrupção da gestação ou a evitar gestações futuras. Os vômitos incoercíveis aparecem em até 2% das gestantes, que podem apresentar desidratação, desequilíbrios hidroeletrolíticos, hemorragia digestiva alta e até lesões hepatorrenais.
Esses sintomas são mais comuns em primigestas e pacientes mais jovens, sendo também mais prevalente em regiões urbanas e países ocidentais. Fatores genéticos parecem apresentar relação com os sintomas mais intensos; bem como a presença de fetos femininos – interessantemente, o odds ratio para a gestação de meninAs em grávidas com hiperêmese é de 1,27 (intervalo de confiança 95% 1,21-1,34).
Apesar de não completamente esclarecido, o surgimento desses sintomas é multifatorial, podendo ser explicado por alterações hormonais, genéticas e gastrintestinais.
Os hormônios gestacionais causam relaxamento da musculatura lisa gastrointestinal, levando a uma lentificação do trânsito intestinal e do esvaziamento gástrico. Por este motivo, tentou-se explicar a hiperêmese pelo aumento dos níveis de progesterona e, especialmente, estradiol; porém ambos estão com seus maiores níveis no terceiro trimestre da gravidez, quando, rotineiramente, as náuseas e vômitos já estão resolvidos.
Por outro lado, a gonadotrofina coriônica humana, o famoso βhCG, tem seus níveis mais elevados durante o primeiro trimestre, quando tipicamente ocorrem os sintomas mais intensos. Além disso, pacientes com mola hidatiforme ou gestações múltiplas, em que os valores de βhCG estão aumentados, apresentam náuseas e vômitos mais severos, corroborando para que este hormônio esteja implicado na fisiopatologia da hiperêmese. Apesar disso, não é observada uma correlação linear entre os níveis de βhCG e a prevalência dos sintomas, o que leva à conclusão de que há outros fatores que implicam em sua ação, como a presença de isoformas mais sintomatológicas ou mutação de receptores mais sensíveis.
O relaxamento do esfíncter esofágico inferior durante a gestação está relacionado à maior incidência de doença do refluxo gastroesofágico (DRGE) durante o pré-natal, que pode levar à queimação, azia e náusea em alguns pacientes. Apesar de isso poder explicar em partes a hiperêmese, não corresponde à explicação mais plausível, pois esse mecanismo aumenta com a evolução da gravidez, contrariamente aos sintomas de náusea e vômitos. Portanto, se as queixas forem persistentes, a presença de DRGE deve ser avaliada como um diagnóstico diferencial.
Há uma associação da presença de sintomas em filhas de mulheres que apresentaram hiperêmese; além disso, há uma correlação entre a ocorrência de hiperêmese gravídica em gestações de um mesmo pai, o que pode sugerir que a expressão de genes paternos no feto possa levar à indução dos vômitos.
Outros fatores já foram propostos como causadores da hiperêmese, como a deficiência de certos nutrientes (vitamina B6, zinco) ou fatores psicológicos, como a depressão ou a ocorrência de gestações indesejadas. Apesar dessas sugestões, nenhuma dessas teorias foram comprovadas quando se observa a prevalência populacional dos sintomas.
Apesar de não haver critérios bem definitivos para diferenciar as náuseas e vômitos da gravidez da hiperêmese gravídica, ambos são considerados diagnósticos de exclusão. Para considerá-los, devemos observar o aparecimento relacionado ao início da gestação e avaliar alguns diagnósticos diferenciais.
Os sintomas são considerados leves quando não há repercussões hemodinâmicas, o exame físico e laboratoriais se mantém sem alterações, sendo possível a evolução normal da gestação.
Por outro lado, a hiperêmese gravídica corresponde a ponta final do espectro dessa patologia. Comumente, é definida pela associação com perda de peso acima de 5% do peso corporal pré-gestacional (ou > 3kg) e pela ocorrência de cetonúria, sendo outras causas excluídas. Essas pacientes podem apresentar hipotensão e alterações laboratoriais (eletrólitos, enzimas hepáticas, hormônios tireoidianos).
Um consenso internacional definiu 4 critérios para a hiperêmese, que podem ser usados para o diagnóstico, conforme apresentado na tabela a seguir:
Critérios diagnósticos para hiperêmese gravídica (2021) | |
1 | Início dos sintomas durante a gestação inicial (< 16 semanas) |
2 | Náuseas e vômitos graves |
3 | Incapacidade de comer/beber normalmente |
4 | Limitação grave das atividades diárias em decorrência dos sintomas |
As pacientes que apresentam sintomas mais intensos necessitam de uma avaliação clínica, buscando sinais de gravidade; além de controle sintomático. Essas grávidas são comuns nos pronto-socorros clínicos e obstétricos! Portanto, para você que vai dar plantões, não deixe de seguir essas dicas e saber como manejar essas pacientes! Para você que quer dominar qualquer pronto-socorro, não deixe de conferir mais dicas sobre emergências médicas no nosso PS Medway, que já está com suas vagas abertas!
A pesagem dessas mulheres é essencial na avaliação inicial, uma vez que, como vimos, a perda de peso pode ser considerada como critério diagnóstico de hiperêmese. Além disso, a medição da pressão arterial irá nos informar se há hipotensão relacionada aos vômitos ou não. A avaliação fetal é importante, podendo ser auscultado batimentos cardíacos fetais (BCF) naquelas gestante com mais de 12 semanas ou a realização de ultrassonografia, com o objetivo de avaliar a presença de gestações múltiplas ou a suspeita de mola hidatiforme.
Quanto aos exames laboratoriais, é importante a avaliação dos eletrólitos séricos e hematócrito, bem como a pesquisa de corpos cetônicos na urina, com o objetivo de avaliar a gravidade das repercussões sistêmicas dos vômitos. Além disso, para diagnóstico diferencial devemos solicitar lipase/amilase, enzimas hepáticas, creatinina, ureia, hemograma completo e hormônios tireoidianos.
Quando a ingesta calórica está muito reduzida, o metabolismo cetônico é ativado e encontra-se cetonúria. Pacientes hipovolêmicas apresentam hemoconcentração, com aumento do hematócrito, podendo também apresentar elevação da creatinina por redução da taxa de filtração glomerular. Desequilíbrios hidroeletrolíticos e ácido-base podem estar presentes, como a hipocalemia e alcalose metabólica hipoclorêmica, em decorrência da eliminação excessiva de fluidos gástricos. Transaminases hepáticas e amilase / lipase estão comumente elevadas em pacientes com vômitos severos.
A definição do melhor tratamento depende da gravidade dos sintomas, sendo possíveis alterações de dieta e hábitos de vida, medicação ou internação para correção de distúrbios hidroeletrolíticos ou, até mesmo, dieta parenteral.
Em pacientes que apresentam náuseas sem vômitos, é possível apenas a orientação de medidas dietéticas e alterações em hábitos para o controle.
A ingestão de alimentos a cada 1 ou 2 horas, evitando deixar o estômago vazio, é uma medida eficaz. Evitar alimentos ou odores que são gatilhos para os enjoos também pode auxiliar, procurando lanches que sejam mais secos, leves e pouco condimentados. Outra orientação efetiva é a realização de refeições menores e mais frequentes, fracionadas, reduzindo a distensão gástrica. Alguns alimentos específicos, como balas de hortelã ou gengibre, podem ajudar a reduzir sintomas de náusea. Além disso, a suplementação de vitamina B6 (piridoxina) também carrega certa evidência para o controle das náuseas.
Diversos antieméticos podem ser utilizados durante a gestação e, muitas vezes, precisamos de associação de alguns deles para controle mais efetivo dos vômitos.
Como abordagem inicial, podemos utilizar antieméticos por via oral. Uma boa primeira opção, com comprovada segurança durante a gestação, é o dimenidrato (Dramin ®) na dose de 50 mg VO até de 6/6 horas – um antihistamínico inibidor dos receptores H1. Ele também atua no sistema vestibular reduzindo a estimulação do centro de vômito. Como efeito colateral, é comum haver sedação e boca seca, devendo-se sempre informar esses efeitos à paciente.
Caso essa primeira medicação não surta efeito, é indicada a associação de uma segunda droga, como os antagonistas dopaminérgicos. Principal representante desta classe, a metoclopramida (Plasil ®) pode ser utilizada na dose de 10 mg VO até 8/8 horas, ou intravenosa.
Se ainda assim não houver controle dos sintomas, um antagonista da serotonina, como a Ondansetrona (Vonau ®), pode ser utilizado – dose de 4 mg VO, 8/8 horas. Apesar de este ser um dos antieméticos mais efetivos, ainda há certa restrição em seu uso na gestação, especialmente antes da 10ª semana, devido ao pequeno aumento do risco de malformações, em especial os defeitos lábio palatinos, devendo-se introduzir essa medicação apenas após tentativas falhas com associação de drogas mais seguras e após pesar riscos e benefícios em conjunto com a paciente.
Em casos refratários, algumas opções já foram propostas, como o uso de glucocorticoides, como a hidrocortisona na dose de 100 mg EV 12/12 horas por 2-3 dias, seguido de doses gradativamente menores de prednisona oral (inicialmente 40 mg por 1 dia → 20 mg por 3 dias → 10 mg por 3 dias e 5 mg por 7 dias). Além disso, clorpromazina ou benzodiazepínicos (ex. diazepam) podem ser efetivos como resgate.
Na identificação de casos graves, em que há a presença de distúrbios hidroeletrolíticos ou sinais clínicos de hipovolemia, associados a perda de peso e incapacidade de alimentação por via oral, a internação em ambiente hospitalar passa a ser mandatória.
Como medida inicial, o jejum para repouso gástrico está indicado. Dessa forma, passa-se a ser essencial a reposição de volume e necessidade calóricas com soro glicofisiológico. Os eletrólitos como potássio, magnésio, cálcio e fósforo devem ser repostos de acordo com a necessidade de cada paciente. Tiamina (vitamina B1) deve ser suplementada como forma de evitar uma rara complicação, a encefalopatia de Wernicke.
Em alguns casos em que a incapacidade de alimentação oral persiste por vários dias e a gestante não consegue manter seu peso e o aporte calórico necessário devido aos vômitos incoercíveis, dieta parenteral pode ser necessária. Nesses casos, para uma adequada disponibilização de proteínas e calorias, é necessário a introdução de dieta por meio de acesso venoso central.
Na medida em que a gestação evolui e após a introdução de múltiplas medicações, em geral, a paciente passa a iniciar a aceitação de dieta e líquidos por via oral. Neste momento, deve-se introduzir alimentos leves, podendo ser oferecido, por exemplo, arroz, bananas e torradas. Na medida em que há tolerância, pode-se progredir a dieta, focando no consumo de proteínas, que são cruciais para o controle da recorrência das náuseas.
Viram só? Muitas vezes é simples orientar esses casos, mas há situações muito mais complexas que exigirão uma abordagem multidisciplinar! Fiquem atentos com esses casos!
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Paranaense, nascido em Curitiba em 1991. Formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) em 2016, com residência em Ginecologia e Obstetrícia na UNICAMP, concluída em 2019. Especialização em Ginecologia Endócrina e Reprodução Humana pela USP-RP em 2019 até 2020. Tem experiência como fellow em Reprodução Humana pela clínica NeoVita, em São Paulo (SP). Nada vem de graça, os resultados refletem a sua dedicação! Siga no Instagram: @dr.marcelomontenegro