Necrólise epidérmica tóxica (NET): uma prova de que existe emergência dermatológica

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A necrólise epidérmica tóxica (NET) é uma emergência dermatológica rara, mas com mortalidade elevada. Por esse motivo, não podemos comer bola aqui. 

Sei que na sua prática médica, a imensa maioria dos casos dermatológicos que você atende são condições relativamente simples, e sua conduta costuma ser prescrever corticoide e consultar com um dermato ambulatorialmente. Mas nesse caso, meu amigo, o buraco é mais embaixo, e a sua conduta tem que ser assertiva, até porque o paciente corre risco de vida.

Que tal entender este assunto e não comer bola no plantão? Continue a leitura que a gente te explica!

Mas que diabos é essa tal de NET? Nunca nem vi…

Nós, médicos e estudantes de medicina, costumamos gostar de doenças com nomes/epônimos complicados. Por conta disso, talvez você já tenha ouvido falar da “irmã da NET”, a síndrome de Stevens-Johnson (SSJ). SSJ e NET são basicamente a mesma patologia, com a diferença apenas no grau de acometimento (falaremos sobre isso na sequência).

Beleza, mas então o que seria a NET (e a SSJ)? A NET é basicamente uma reação de hipersensibilidade cutânea secundária – na maioria dos casos, a medicações. Sua fisiopatologia ainda não é bem compreendida, mas sabe-se que ocorre uma resposta imunológica específica com apoptose de queratinócitos deflagrada por antígenos/metabólitos (presentes nos medicamentos).

Classificação da necrólise epidérmica tóxica

  • Síndrome de Stevens-Johnson (SSJ): <10% da área corpórea acometida;
  • Sobreposição SSJ/NET: 10-30% da área corpórea acometida;
  • Necrólise Epidérmica Tóxica (NET): >30% da área corpórea acometida.

Etiologia: quem são os vilões?

Mais de 80% dos casos são causados por medicamentos. Os mais comumente associados serão descritos na tabela abaixo. Atenção aqui!

Medicamentos associados à NET
Anticonvulsivantes (lamotrigina/carbamazepina/fenitoína/fenobarbital)
Alopurinol (>100mg/dia)
Sulfonamidas (clotrimazol/sulfassalazina/sulfadiazina)
Antibióticos (penicilina/cefalosporina/quinolona/doxiciclina/eritromicina/rifampicina/minociclina)
Sertralina
Paracetamol/Dipirona
Nevirapina
AINEs (diclofenaco/ibuprofeno/naproxeno/cetoprofeno/piroxicam/celecoxibe)
Contraste iodado

Estes são apenas os mais comuns. Mais de 100 já foram descritos como desencadeantes.

Além de medicamentos, outras possíveis causas seriam:

  • vacinação;
  • infecções (mycoplasma/CMV/herpes simples/EBV/HAV/dengue);
  • transplante de medula ou órgãos sólidos;
  • idiopática.

Quadro clínico da necrólise epidérmica tóxica

Os sintomas costumam aparecer cerca de 3 a 7 semanas após a exposição ao medicamento (período de latência). Inicialmente, o paciente pode apresentar apenas pródromos (febre, astenia e mal-estar), com duração normalmente de até 3 dias.

Exame dermatológico (aqui filho chora e a mãe não vê…):

  • eritema generalizado com posterior aparecimento de bolhas;
  • lesões arredondadas eritematosas com uma bolha necrótica central (“lesão em alvo atípico”);
  • bolhas confluem e se rompem formando grandes áreas de descolamento da pele (aspecto de grande queimado), inclusive acometendo também as mucosas;
  • sinal de Nikolsky positivo (descolamento da pele consequente de uma leve pressão).

Ficou claro? Eu sei que não, por isso, abaixo te trago algumas imagens (retiradas do UpToDate) para elucidar o que foi falado acima.

Eritema como “pano de fundo” e presença de algumas bolhas.

Aqui é fácil, temos um eritema como “pano de fundo” e presença de algumas bolhas.

“Lesão em alvo atípico” – lesão eritematosa arredondada com uma bolha necrótica ao centro.

Aqui, temos uma “lesão em alvo atípico” – lesão eritematosa arredondada com uma bolha necrótica ao centro.

Podemos observar o descolamento na pele. Caso tenha sido causado após uma leve pressão/tração, falamos em sinal de Nikolsky positivo.
Podemos observar o descolamento na pele. Caso tenha sido causado após uma leve pressão/tração, falamos em sinal de Nikolsky positivo.

Nestas duas imagens, podemos observar o descolamento na pele. Caso tenha sido causado após uma leve pressão/tração, falamos em sinal de Nikolsky positivo.

Como fazer o diagnóstico de necrólise epidérmica tóxica?

Então, o diagnóstico de NET pode ser dado observando o quadro clínico e a relação com exposição a medicamentos (aqui, cito o algoritmo de ALDEN para causalidade de medicações no quadro de NET. Vários critérios são avaliados, com diferentes pontuações em cada item, ou seja, complexo e não vale a pena decorar, mas guarde o nome – ALDEN – e se algum dia precisar, pesquise. Google it!).

Diagnóstico de NET pode ser utilizado em casos de necrólise epidérmica tóxica

Para confirmação diagnóstica, temos que lançar mão de uma biópsia da pele para análise histopatológica

E o tratamento de necrólise epidérmica tóxica?

Principal conduta

Suspensão da medicação desencadeante!

Internação imediata e avaliação da dermatologia

Sempre está indicada a internação imediata, bem como deve ser solicitado avaliação da equipe da dermatologia. 

A internação em leito em UTI é indicada se a área de descolamento for maior que 30% (ou seja, NET) ou houver presença de 2 dos seguintes critérios:

  • idade > 40 anos; 
  • presença de malignidade;
  • FC > 120 bpm;
  • descolamento > 10% na admissão;
  • ureia > 60 mg/dL;
  • glicemia > 252 mg/dL;
  • bicarbonato < 20 mm/L.

Cuidado com a pele

Diversas condutas podem ser adotadas para o cuidado da pele na NET, tais como:

  • desbridamento cirúrgico da epiderme necrótica;
  • cuidado de feridas “antiabrasivo”: deixar a pele descolada no local para agir como um curativo biológico;
  • curativo com gaze nanocristalina não aderente contendo prata (provavelmente não terá isso no seu serviço, mas pode usar a boa e velha gaze impregnada com vaselina);
  • Substitutos biossintéticos da pele.

Cuidado ocular

A avaliação diária é necessária, tendo em vista a rápida progressão da doença em nível dos olhos que pode ocorrer.

Podem ser usados colírios lubrificantes apenas, contendo corticoide ou até mesmo antibiótico, dependendo da gravidade do quadro.

Fluidoterapia e nutrição

Por conta das áreas desnudadas, pode ocorrer desequilíbrio de fluidos e eletrólitos. Por conta disso, temos que corrigir os distúrbios eletrolíticos e repor volume. Nesses casos, a reposição é cerca de ⅓ menor do que a necessária para os pacientes vítimas de queimaduras.

Reposição de cristaloides nas primeiras 24 horas: 2 ml/Kg x % de área corporal com descolamento de pele.

A alimentação oral (se necessário via sonda nasogástrica) deve ser iniciada o mais rápido possível.

Analgesia

A dor é comum nos casos de NET e pode ser muito intensa.

  • Se dor leve: analgésicos não opioides.
  • Se dor forte: analgésicos opioides.

Terapias adjuvantes

Ainda não são consenso na literatura e seu uso é baseado em experiência clínica e diretrizes locais.

  • Prednisona 1-2 mg/kg/dia por 3 a 5 dias (iniciar nas primeiras 48 a 72h do quadro);
  • Ciclosporina 3-5 mg/kg/dia (parece retardar a progressão da NET – evidências crescentes);
  • Inibidores do TNF-alfa (Infliximab 5 mg/kg ou Etanercept 50 mg SC);
  • Imunoglobulina intravenosa (pouca evidência);
  • Plasmaférese (pouca evidência).

Prognóstico: é tão grave assim?

A mortalidade nos casos de NET é de cerca de 30% (enquanto que na Síndrome de Stevens-Johnson é de aproximadamente 10%). Sendo que as principais causas de morte intra-hospitalar são: sepse, SDRA e falência múltipla de órgãos.

A recorrência é alta nos casos de NET, quando o paciente é re-exposto à droga deflagradora.

E sobre sequelas? 

  • Cutânea: é comum, podendo ser hipo/hiper pigmentação, cicatrizes, nevos e prurido crônico. Outra possível sequela é dor crônica (⅓ dos pacientes).
  • Ocular: acomete cerca de 50-90% dos pacientes com envolvimento ocular, podendo ser olho seco, fotofobia, triquíase, neovascularização da córnea, ceratite ou até mesmo cicatriz da córnea levando à deficiência visual (e, mais raramente, cegueira).
  • Oral/dental: não são raras, podendo ser desconforto na boca, xerostomia, inflamação gengival, cárie e doença periodontal.
  • Urogenital: mais comum em mulheres, com possível aglutinação labial, estenose introital, secura vaginal, dispareunia e retenção urinária.
  • Psicológicas: relatos de piora da qualidade de vida, ansiedade e depressão.

Ufa! Terminamos

Agora não podemos mais fazer piada de que na dermato não tem emergência, porque acabamos de ver que existe, sim, e das grandes. Mas se chegar um quadro de NET, sabemos o que fazer agora.

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Referências

HIGH, Whitney A. Stevens-Johnson syndrome and toxic epidermal necrolysis: Pathogenesis, clinical manifestations, and diagnosis. UpToDate, 10 ago. 2021. Disponível: https://www.uptodate.com/contents/stevens-johnson-syndrome-and-toxic-epidermal-necrolysis-pathogenesis-clinical-manifestations-and-diagnosis. Acesso em: 4 dez. 2021.

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BrunoBlaas

Bruno Blaas

Gaúcho, de Pelotas, nascido em 1997 e graduado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Residente de Clínica Médica na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP). Filho de um médico e de uma professora, compartilha de ambas paixões: ser médico e ensinar.