Microcefalia por Zika vírus: da epidemiologia ao manejo

Conteúdo / Medicina de Emergência / Microcefalia por Zika vírus: da epidemiologia ao manejo

Fala, pessoal! Temos certeza de que você já ouviu falar bastante das arboviroses, mas não tem jeito, esse assunto é mesmo inesgotável. É preciso ler um tema de cada vez para saber sempre um pouco mais. Neste texto de hoje, vamos falar mais especificamente da microcefalia por Zika vírus e o impacto que a sequela da infecção viral pode trazer para a sociedade no geral.

A transmissão do Zika vírus

Se a infecção por zika é uma arbovirose, a única forma de transmissão do vírus é pela picada do mosquito Aedes aegypti, certo? Errado! Depois de estudos um pouco mais aprofundados sobre o zika vírus, foram identificadas mais duas formas de transmissão: por via sexual, mesmo meses após a infecção inicial e a transmissão vertical, sendo que, neste último tipo, o vírus atravessa a placenta e a gravidade das malformações que podem ser causadas no sistema nervoso em formação dependem do estágio de desenvolvimento fetal durante o período da infecção. E é aí que tudo se complica.

Afinal, o que é microcefalia?

A microcefalia é uma malformação congênita em que o sistema nervoso central, mais especificamente o cérebro, não se desenvolve corretamente. Ela se define pelo perímetro cefálico menor que o esperado para idade e sexo (abaixo de z -2 nas curvas da OMS). 

A microcefalia não está necessariamente associada a um comprometimento cognitivo ou motor. Algumas crianças podem ter microcefalia ao nascer de forma constitucional ou familiar, sem repercussão no seu desenvolvimento ao longo da vida. Porém, a maioria dos casos de microcefalia é acompanhada de alterações motoras, cognitivas e até sensitivas, sendo o comprometimento cognitivo presente em cerca de 90% dos casos. 

E como foi feita a associação do vírus Zika à microcefalia?

Em 2015, inicialmente no estado de Pernambuco, depois em outros estados do nordeste e também fora dessa região, observou-se um aumento inesperado do número de bebês nascidos com microcefalia sem uma causa específica aparente. Havia uma epidemia de microcefalia, quando meses antes havia ocorrido e ainda estava em curso uma epidemia de Zika vírus nas mesmas regiões. 

As autoridades sanitárias, então, começaram a investigar se havia alguma relação entre a infecção pelo Zika vírus e a microcefalia. Depois que se constatou, de fato, essa ligação, esse evento foi declarado como Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, sendo posteriormente também reconhecido pela OMS como importância Internacional. 

A investigação da relação entre esse desfecho da microcefalia e a infecção pelo vírus Zika só foi possível devido à existência de um serviço de Vigilância Epidemiológica, bem consolidado e atuante, que logo estabeleceu os fluxogramas para os casos suspeitos e as formas de notificação dos eventos. 

Atualmente, todos os casos suspeitos de microcefalia relacionados ao vírus Zika devem ser registrados no formulário de Registro de Eventos de Saúde Pública (Resp) tanto pelos serviços públicos de saúde quanto pelos privados, e a partir desse registro a vigilância epidemiológica consegue monitorar e dar seguimento na investigação dos casos. Além disso, também deve ser registrado como malformação congênita na própria Declaração de Nascido Vivo, visto que essa é a principal fonte de informações que alimenta o sistema de vigilância. 

O mecanismo de lesão do vírus no sistema nervoso central do feto

Não conhecemos, completamente, esse mecanismo, mas sabemos que o vírus interfere na multiplicação celular e na formação dos neurônios. Como essas células se multiplicam de forma mais lenta, o crescimento dos ossos do crânio também se lentifica e acaba permitindo uma calcificação prematura, culminando no fechamento dos ossos em um formato menor comparado ao que se o cérebro estivesse crescendo normalmente.

Como estão os casos de microcefalia no Brasil?

De acordo com último Boletim Epidemiológico de Síndrome Congênita associada à infecção por Zika vírus (SCZ), de novembro de 2020: 

  • De 2015 a 2019 tivemos 19.492 casos suspeitos de SCZ e outras etiologias infecciosas, com 3.563 (18,3%) que foram confirmados 
  • Apenas no ano epidemiológico de 2020, até novembro, notificaram-se 886 novos casos, e obteve-se a confirmação de 27 (3%). Desses, 02 nasceram em 2016, 02 em 2018, 09 em 2019, 13 em 2020 e um foi aborto espontâneo. 

Segue abaixo um mapa da distribuição geográfica dos casos de SCZ nos últimos anos:

imagem ilustrativa microcefalia
Imagem: Distribuição dos casos confirmados de SCZ e outras etiologias por município e ano de notificação. Fonte: Boletim Epidemiológico 47, Vol 51, Nov/2020

Ok, mas e agora, o que fazer com uma criança com suspeita de microcefalia?

A primeira coisa a se fazer na suspeita de microcefalia por Zika é a investigação do recém-nascido com exame físico detalhado, especialmente o neurológico. Além disso, deve-se providenciar a medida do perímetro cefálico e exames laboratoriais, incluindo os de imagem, que se iniciam logo após ao nascer. 

Exames a serem solicitados

  • Triagem infecciosa (sorologias – sífilis, toxoplasmose, rubéola, herpes, citomegalovírus e a sorologia e RT PCR para Zika vírus);
  • Triagem neonatal básica (testes do pezinho, orelhinha, olhinho);
  • Exames inespecíficos (hemograma, função renal e transaminases);
  • Imagem (ultrassom transfontanela, tomografia de crânio).

A partir da investigação clínica e laboratorial e o acompanhamento ao longo do tempo, será possível saber se é uma microcefalia causada pela infecção por Zika vírus na gestação ou não e, ainda, se essa microcefalia vai gerar ou está gerando algum prejuízo para a criança, seja ele cognitivo, motor ou sensitivo.

Quem faz o acompanhamento desses casos?

É importante lembrar que o acompanhamento de puericultura habitual deve acontecer normalmente nas unidades básicas de saúde (UBS), seja com o médico de família e comunidade ou com o pediatra. No que diz respeito às visitas ao médico, elas devem seguir o calendário de consultas de puericultura referente a uma criança caracterizada como de alto risco. Esse calendário é determinado pelo Ministério da Saúde. 

Se, ao nascer, a criança já apresentar os exames alterados e/ou complicações específicas, ela também deve fazer seguimento junto às diversas especialidades necessárias, conforme o comprometimento funcional que houver. 

Em geral, durante o acompanhamento, devemos dar uma atenção especial à avaliação do desenvolvimento neuropsicomotor, sendo necessário que o profissional fique bem atento aos marcos e aos possíveis atrasos nesses marcos do desenvolvimento da criança no primeiro ano de vida. Quanto antes se iniciar a estimulação da criança, melhores serão os resultados.

Tenha especial atenção a um detalhe que ainda não falamos e é muito importante: o aleitamento materno pode acontecer normalmente nos casos suspeitos de Zika ou microcefalia por Zika. 

E o tratamento, existe?

Conforme vamos compreendendo a doença, ela parece ser irreversível: será que a criança com microcefalia está fadada a ter disfunção e não há nada a fazer para evitar esse desfecho? 

Olha, não é bem assim. A principal recomendação para as crianças com microcefalia é a inserção em programas de Estimulação Precoce, em que o objetivo principal é estimular a criança e ampliar suas habilidades e competências, para fortalecer o seu desenvolvimento motor e cognitivo. O início da participação na estimulação precoce deve acontecer assim que a criança tenha alta hospitalar e esteja estável clinicamente, devendo continuar até os 3 anos de idade.

Os programas de estimulação precoce apenas são efetivos quando conduzidos por equipe multiprofissional e interdisciplinar bem treinada e coesa, na qual cada profissional de saúde tenha seu papel no cuidado com o infante. O ambiente onde a criança vive e a orientação aos pais durante todo o processo também são muito importantes para o ganho com os estímulos, já que a terapêutica só tem resultado quando também é reproduzida em casa. 

É isso!

A microcefalia é uma condição grave que pode trazer disfunções importantes para uma pessoa pelo resto da sua vida, então o melhor remédio é prevenir. Vamos acabar com a multiplicação do mosquito pois, se controlarmos o vetor que transmite Zika, diminuiremos a chance de uma nova epidemia de microcefalia por essa causa. Não se esqueçam também de orientar as gestantes a usarem repelente, telas nas janelas e portas e roupas compridas. 

Se quiserem saber um pouco mais das outras arboviroses, como a dengue na gravidez, vocês podem se atualizar aqui. Outra possibilidade de complementar os estudos se relaciona às demais infecções congênitas, que aparecem muito nas provas de São Paulo, em especial a sífilis congênita, a qual teve o protocolo de manejo atualizado recentemente. 

Outros títulos e conteúdos bem legais e totalmente gratuitos estão disponíveis na Academia Medway, aproveitem e deem uma conferida! Lembrando que, se surgirem dúvidas ou comentários, não hesitem em enviá-los para nós!

Bons estudos e até mais! 

Referências Bibliográficas

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico, volume 51, n47. Brasília, novembro de 2020. Disponível em https://www.gov.br/saude/pt-br/assuntos/media/pdf/2020/dezembro/11/boletim_epidemiologico_svs_47.pdf. Acessado em 11/10/2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus zika. Brasília: Ministério da Saúde, 2016. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/protocolo_resposta_microcefalia_relacionada_infeccao_virus_zika.pdf. Acessado em 11/10/2021.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Protocolo de atenção à saúde e resposta à ocorrência de microcefalia relacionada à infecção pelo vírus Zika. Brasília: Ministério da Saúde, 2015. Disponível em https://www.sbp.com.br/fileadmin/user_upload/2015/12/PROTOCOLO-SAS-MICROCEFALIA-ZIKA-dez-15.pdf. Acessado em 11/10/2021.

É médico e quer contribuir para o blog da Medway?

Cadastre-se
Ana PaulaFortes Teles

Ana Paula Fortes Teles

Mineira, nascida em Uberlândia em 1990. Formada pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em 2016, residência em Medicina de Família e Comunidade pela Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro (SMS-RJ), com conclusão em 2018. Ama a Saúde Pública e é apaixonada em cuidar do que a comunidade tem de melhor: as pessoas.