Estenose mitral: tudo que você precisa saber

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Fala galera! Depois de um breve descanso da cardiologia, estamos de volta pra falar de um assunto muito importante e que às vezes bagunça um pouco a nossa cabeça, principalmente no começo da faculdade, quando começamos a ter contato com a semiologia. Quem nunca se enrolou pra saber se o sopro era proto ou mesosistólico, se era ejetivo, em crescendo, +2, +3, em qual foco, bicho que que cê tá falando pelo amor de Deus! Pois é. Todos estivemos lá. Mas hoje, parte disso vai mudar. Porque hoje eu vou te ensinar sobre Estenose Mitral.

Bora lá?

Estenose mitral: ligando o GPS

Pra assimilar qualquer valvopatia, precisamos entendê-las como um problema mecânico dentro de um ciclo. E antes de conhecer o problema, como eu sempre reforço nas nossas conversas, precisamos dar um passo pra trás e entender como é o funcionamento normal. Então do básico, pro avançado parecer tão básico quanto.

Estenose mitral: tudo que você precisa saber

A valva mitral fica entre o átrio e o ventrículo esquerdo, é formada por duas cúspides (anterior e posterior). Seu foco de ausculta é no 5º espaço intercostal esquerdo, na linha hemiclavicular (logo abaixo do mamilo). 

Até aqui sem grandes desafios. A parte em que algumas pessoas encontram dificuldade é justamente como encaixar a patologia (ou mesmo o achado de exame, por vezes inocente) dentro do ciclo cardíaco. Pra isso, é importante que saibamos exatamente quais são os eventos em cada fase (quem abre, ou deveria abrir, quem fecha, ou deveria fechar); assim, os achados da nossa ausculta podem ser devidamente topografados pra ganhar sentido. Vem cá:

Estenose mitral: tudo que você precisa saber
Fonte: Wikimedia

Calma, calma. Não sai correndo não. Esse é o diagrama de Wiggers. Ele assusta, mas é bem útil se você souber usar. A parte que nós vamos focar é a curva de pressão atrial e o fonocardiograma aqui embaixo. Perceba que durante todo o período de sístole a mitral se encontra fechada. Então tem como um sopro mitral ser diastólico? Só se ela não fechar. Quando a valva não fecha, chamamos de insuficiência.

No nosso caso, temos uma estenose mitral, então o problema dela não é fechar, é abrir. Logo, o sopro que estamos procurando é diastólico. 

Esse é o fonocardiograma da estenose mitral: temos um sopro diastólico em “ruflar” (tipo tambor mesmo), que é o sangue passando pela valva estreitada. Além do sopro, ocorre também o “reforço pré-sistólico” e o estalido de abertura (em casos em que a calcificação não está tão grave). O estalido ocorre logo antes do início do sopro, é mais audível no ápice cardíaco. O reforço pré sistólico ocorre no fim da diástole, no que corresponde à curva “a” do diagrama de Wiggers, e reflete o fluxo sanguíneo passando com maior velocidade pela valva mitral estreita após a contração atrial. É um ruído grosseiro, regurgitativo. Em pacientes com fibrilação atrial, como o átrio não faz a contração, ele não ocorre.

Mas por quê? 

Pensou em estenose mitral, tem que pensar em febre reumática. Não tem jogo. Ainda hoje temos a FR como principal causa da patologia valvar. Existe ainda a entidade da estenose mitral congênita, mas é uma entidade mesmo, porque é muito raro. Também pode ocorrer 50% dos pacientes com síndrome carcinoide (já viu algum? Eu nunca vi), e em casos de endocardite com vegetações extensas (aí já é mais comum). A própria idade pode causar um tipo funcional de estenose mitral, devido à calcificação do anel mitral com redução do seu tamanho e calcificação dos folhetos valvares.

O que ocorre de modo geral, é a fusão das comissuras valvares, encurtamento e fusão das cordoalhas e um espessamento dos folhetos, reduzindo o diâmetro de abertura valvar. Ao longo do tempo, essas modificações se tornam deformidades, com fibrose e distorção da arquitetura valvar original.

A definição do quão severa é a estenose é feita através da área de abertura do orifício valvar (normal de 4 a 6cm²). A estenose mitral é considerada leve quando chega a aproximadamente 2cm² e severa a partir de 1cm². Por que isso é importante? Porque sabemos que quanto menor a área, maior é o gradiente pressórico pra vencer a estenose. E qual é o problema de ter uma pressão aumentada no átrio esquerdo? O aumento da pressão capilar pulmonar em consequência. E daí? Hipertensão da artéria pulmonar, congestão, dispneia.

Falando em quadro clínico…

O parágrafo acima já deu uma palhinha do que devemos esperar de um paciente com estenose mitral. A dispneia é o carro chefe, por motivos já comentados aqui, que pode se iniciar com uma intolerância ao exercício, que o paciente muitas vezes não valoriza, mas está presente em pelo menos 70% dos pacientes.

Outros sintomas que podem ser encontrados são hemoptise, desde um quadro brando causado pela dispneia paroxística noturna, até quadros importantes pelo aumento súbito do gradiente pressórico causando rotura das veias brônquicas.

O aumento do gradiente pressórico à montante pode causar não só hipertensão pulmonar como insuficiência cardíaca direita, com seus sintomas característicos (turgência jugular, hepatomegalia, edema de membros inferiores, ascite, congestão pulmonar). Outra alteração comumente encontrada é o aumento do átrio esquerdo, algo que você já consegue deduzir porque acontece depois de tudo que conversamos aqui.

Ah, uma curiosidade: pelo aumento importante de átrio esquerdo na estenose mitral, o paciente pode desenvolver rouquidão, pela compressão do nervo laríngeo recorrente, na chamada síndrome cardiovocal ou Síndrome de Ortner. Ela não é exclusiva da estenose mitral, mas acontece por isso também.

O que mais pode dar errado?

Então. Nunca faça essa pergunta. Sempre existe algo a mais pra dar errado, saca só:

O paciente com aumento de átrio esquerdo pelo gradiente pressórico aumentado pra vencer a valva estenosada pode evoluir com Fibrilação Atrial, e por consequência aumentar severamente seu risco de fenômenos tromboembólicos. Isso é tão ruim que um paciente com estenose mitral e FA reduz sua sobrevida em 5 anos em 21% só por ter FA (vai de 85% pra 64%).

Além disso, o paciente com estenose mitral tem mais chance de desenvolver endocardite do que outros pacientes com valvopatias como insuficiência mitral ou doença na valva aórtica.

E o eletro? E o eco?

O ECG dos pacientes com estenose mitral não reproduz nenhum padrão específico da doença, mas tão somente alterações secundárias à estenose, como aumento de átrio esquerdo e hipertrofia de ventrículo direito.

Em laranja, temos uma onda P bifásica, com fase negativa > 1mm². Em vermelho, a onda P entalhada sugestiva de sobrecarga de AE.

Em laranja, temos uma onda P bifásica, com fase negativa > 1mm². Em vermelho, a onda P entalhada sugestiva de sobrecarga de AE.
Fonte: ECG Waves

Se você ainda tem dúvidas sobre a interpretação de ECG, sugiro dar uma olhada no nosso e-book gratuito ECG Sem Mistérios, que traz todas as informações de que você precisa para mandar bem em qualquer discussão envolvendo esse exame, incluindo as 5 principais etapas na hora da análise sistemática de um ECG.

Falando em sobrecarga de ventrículo direito, lembramos principalmente das derivações precordiais, em V1 e V2 teremos a onda R > S, pela resultante do vetor (à direita), e à medida em que se afastam da direita (V5 e V6), a onda S > R, pelo mesmo motivo.

Os achados radiográficos da estenose mitral variam dentro de um espectro, que depende majoritariamente do grau de dilatação do átrio esquerdo. Na imagem acima podemos identificar o sinal do duplo contorno, à direita, decorrente do aumento do átrio esquerdo que se projeta (normalmente vemos apenas o AD). Numa incidência em perfil, podemos ver a projeção do AE em direção ao esôfago.

Nesse eco, vamos avaliar como se estivéssemos de cabeça pra baixo. Na parte mais baixa do vídeo é o AE. Veja que ele tem um aumento de tamanho; e na diástole, com a abertura valvar mitral, há uma restrição de abertura importante.

Acrescentamos o doppler nesse vídeo. O fluxo em azul indica que ele está “fugindo” do probe, e como já vimos, AE embaixo, VE em cima; conseguimos abarcar melhor a ideia do sopro em ruflar com essa visualização.

E como é o tratamento da estenose mitral?

Na realidade não é como, mas “quando” tratar. Os estudos atuais consideram como limiar de intervenção a faixa de 1,5cm² de área valvar, mas o tratamento pode ser considerado pra valores acima deste em caso de sintomatologia importante ou se houver sintomatologia ao esforço após teste apropriado. A intervenção pode ser percutânea ou aberta.

O tratamento medicamentoso pode ser feito para atenuar sintomas temporariamente até que seja feita a correção cirúrgica. Betabloqueadores, digoxina ou bloqueadores de canal de cálcio podem ser utilizados, além de diuréticos de alça se sintomas congestivos.

O mais importante nesses pacientes é a avaliação do risco de eventos tromboembólicos, principalmente em caso de FA concomitante, histórico de evento anterior ou presença de trombo no átrio esquerdo. A questão da anticoagulação no paciente com valvopatia é alvo de diversas discussões científicas, e até muito recentemente não havia outra alternativa exceto antagonistas da vitamina K (a famosa Varfarina); contudo, já existem estudos em andamento demonstrando não só a possibilidade de uso, mas a superioridade dos DOACs na FA valvar. 

Estenose mitral: saiba mais

Vamos esperar cenas dos próximos capítulos, mas enquanto isso, apenas Varfarina e controle de RNI pra galera da FA valvar.

Sobre a estenose mitral, é isso!

É isso, tropa! Espero que tenha sido proveitoso pra vocês, vejo vocês semana que vem.

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É nois!

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Anna ClaraAlmeida

Anna Clara Almeida

Nascida em 92 no interior do Rio de Janeiro, cria de São Paulo. Formada pela Unicamp em 2016 e especialista em Clínica Médica pela mesma instituição em 2020. O estudo e o esforço são as forjas que transformam talento em habilidade.