Você está diante de um bebê com febre alta, sem nenhum foco aparente no exame físico. Nenhum sinal de otite, garganta limpa, ausculta normal, sem vômitos ou diarreia. E aí, o que fazer? Se você pensou em investigar a urina, acertou em cheio. A infecção do trato urinário (ITU) é uma das principais causas de febre sem foco em crianças pequenas, especialmente nas menores de 2 anos. Ignorar esse diagnóstico pode custar caro — e não estamos falando só de um tratamento mal feito, mas de possíveis sequelas renais.
Entender a ITU na infância é fundamental não só para o manejo adequado, mas para evitar condutas desnecessárias, identificar pacientes de risco e, acima de tudo, proteger o rim em desenvolvimento. Então, vamos conversar sobre os pontos mais importantes que você precisa dominar?
ITU é a presença de um único germe patogênico infectando qualquer segmento do trato urinário, provocando um processo inflamatório sintomático. E aqui vale a pena destacar um ponto essencial: nem toda presença de bactéria na urina significa ITU.
A bacteriúria assintomática, por exemplo, é um achado comum em algumas crianças, especialmente em meninas, e não deve ser tratada. Para considerarmos uma ITU de fato, precisamos de sinais e sintomas clínicos associados a exames laboratoriais compatíveis.
A infecção pode ser classificada de forma simplificada em dois tipos: a ITU baixa, também chamada de cistite, que se restringe à bexiga e geralmente não cursa com febre; e a ITU alta, ou pielonefrite, que acomete o parênquima renal e se manifesta com febre alta e sintomas sistêmicos. Essa diferenciação é importante porque orienta a conduta terapêutica e a necessidade de investigação complementar.
A prevalência de ITU varia bastante conforme a idade e o sexo. Durante o primeiro ano de vida, os meninos são mais acometidos, especialmente os não circuncidados — e a explicação está na anatomia e nos fatores locais de defesa.
A partir do segundo ano de vida, as meninas passam a ser as principais vítimas, por razões anatômicas (uretra mais curta e próxima ao ânus), hormonais e comportamentais (como o início do desfralde e hábitos de higiene).
Mas além desses fatores, existem condições clínicas que aumentam significativamente o risco de ITU em qualquer idade. Crianças com disfunção vesical e intestinal, alterações anatômicas do trato urinário (como refluxo vesicoureteral ou uropatias obstrutivas), uso de sonda vesical, ou mesmo história familiar de infecção urinária, merecem atenção redobrada. Em adolescentes, a atividade sexual e a manipulação uretral também aparecem como fatores de risco relevantes.
O principal agente etiológico da ITU na infância, em todas as faixas etárias, é a Escherichia coli, responsável por cerca de 80% dos casos. Outras bactérias como Klebsiella spp e Proteus spp também são encontradas com alguma frequência — este último, aliás, está presente em até 30% das infecções urinárias em meninos, podendo causar alcalinização da urina e formação de cálculos de estruvita.
Em adolescentes, principalmente os sexualmente ativos, é preciso considerar também o Staphylococcus saprophyticus. Já vírus como o Adenovírus podem causar cistite hemorrágica, principalmente quando há hematúria macroscópica associada a piúria estéril.
Esse é um dos grandes desafios do diagnóstico: os sinais e sintomas variam conforme a idade da criança. Em lactentes e menores de 2 anos, os sinais são inespecíficos. Febre isolada, irritabilidade, recusa alimentar, vômitos, perda de peso ou até atraso no ganho ponderal podem ser as únicas manifestações.
Isso mesmo: a criança pode ter uma infecção renal ativa sem qualquer queixa urinária. Por isso, é fundamental considerar ITU na investigação de qualquer febre sem foco definido nessa faixa etária.
Já nas crianças maiores, o quadro clínico costuma ser mais direcionado. Febre, disúria, polaciúria, dor suprapúbica ou lombar, incontinência urinária e dor à punho-percussão lombar (sinal de Giordano) são sintomas comuns e ajudam a diferenciar uma cistite de uma pielonefrite.
O diagnóstico é sempre clínico-laboratorial. A primeira etapa é o exame de urina tipo 1, que oferece indícios importantes: presença de leucócitos (piúria: Acima de 5-10 leucócitos por campo de grande aumento ou ≥ 10.000/ml), nitrito positivo, esterase leucocitária positiva e presença de bactérias à microscopia sugerem infecção. Porém, esse exame não confirma ITU isoladamente.
A confirmação vem com a urocultura, considerada o padrão-ouro. Mas atenção: o resultado só é válido se houver crescimento de um único patógeno e a quantidade de unidades formadoras de colônia (UFC/mL) deve respeitar o método de coleta:
Ah, e uma dúvida comum: posso confiar no saco coletor? A resposta é: só se o resultado vier negativo, pois o risco de contaminação é altíssimo. Um resultado positivo nesse caso tem baixo valor preditivo positivo (até 80% de falsos positivos!), mas um negativo ajuda a excluir o diagnóstico.
Nem toda criança com ITU precisa sair fazendo todos os exames como USG, cintilografia e uretrocistografia. A investigação por imagem é direcionada, especialmente para os seguintes grupos:
A ultrassonografia renal e das vias urinárias é, na maioria dos casos, o exame inicial indicado após o diagnóstico de ITU febril, especialmente em menores de 2 anos. Trata-se de um exame não invasivo, acessível e útil para identificar malformações estruturais como hidronefrose, duplicações pieloureterais e outras uropatias obstrutivas. No entanto, vale lembrar que um resultado normal não exclui completamente a presença de alterações funcionais como refluxo vesicoureteral (RVU).
A uretrocistografia miccional (UCM), por sua vez, é o exame de escolha para detecção do RVU, especialmente em casos de ITU febril recorrente, alterações sugestivas na ultrassonografia ou antecedentes familiares de refluxo. Por ser um exame mais invasivo, com uso de cateter e contraste, a sua indicação deve ser criteriosa, conforme protocolos vigentes.
E não se esqueça que esse exame deve ser realizado somente após o término do tratamento erradicador, para evitar a disseminação da infecção e com a criança em uso de antibioticoprofilaxia para reduzir os riscos de ITU iatrogênica.
Já a cintilografia renal com DMSA tem um papel importante na avaliação da função cortical renal e detecção de lesões inflamatórias agudas nos rins, sendo útil tanto na fase aguda, quando pode confirmar o diagnóstico de pielonefrite, quanto na fase tardia (após 6 meses do episódio), quando permite verificar a presença de cicatriz renal crônica. Esse achado é relevante para o seguimento da criança, especialmente se houver risco de progressão para doença renal crônica.
Não há consenso na literatura quanto à sequência de exames de imagens na investigação do trato urinário na ITU. Os autores indicam a seguinte diretriz após um episódio de ITU confirmado (Figura 1) segundo o Tratado de pediatria da SBP 2024

Suspeitou de ITU? Não espere o resultado da urocultura para iniciar o antibiótico. O tratamento deve começar assim que houver suspeita clínica, com o objetivo de evitar complicações, especialmente nos casos de pielonefrite.
A escolha do antibiótico vai depender de fatores como a gravidade do quadro, a idade da criança, o estado geral e a capacidade de receber medicação por via oral.
Crianças com mais de 3 meses, que estão em bom estado geral, bem hidratadas, sem vômitos e capazes de ingerir líquidos, podem ser tratadas em casa, com antibióticos por via oral. Já crianças febris, toxemiadas, com vômitos persistentes, sinais de desidratação ou com menos de 3 meses devem ser hospitalizadas para iniciar o tratamento por via endovenosa.
Entre os antibióticos orais mais usados estão as cefalosporinas de primeira ou segunda geração, a amoxicilina-clavulanato e a combinação sulfametoxazol + trimetoprim. Por outro lado, antibióticos como ácido nalidíxico e nitrofurantoína não devem ser usados nos quadros febris, pois não atingem concentrações adequadas no rim, onde pode haver infecção.
Quando a criança apresenta sinais de maior gravidade — como vômitos, desidratação, alteração do nível de consciência ou distúrbios metabólicos — o tratamento deve ser iniciado com antibióticos parenterais, como cefalosporinas de terceira geração (ceftriaxona, ceftazidima) ou, alternativamente, aminoglicosídeos (gentamicina ou amicacina). Após estabilização clínica, pode-se trocar para a via oral para completar o tratamento. O tempo total de antibiótico geralmente é de 7 a 14 dias, com média de 10 dias.
Já os recém-nascidos, principalmente os prematuros, exigem uma abordagem ainda mais cuidadosa. A flora urinária nessa faixa etária vem mudando, com aumento de infecções fúngicas, principalmente por Candida.
Nessas situações, o tratamento inicial costuma seguir o mesmo protocolo da sepse neonatal: ampicilina associada a um aminoglicosídeo. Se o germe isolado for Staphylococcus ou Enterococcus, utiliza-se vancomicina com aminoglicosídeo. Cefalosporinas de terceira geração podem ser usadas conforme a sensibilidade do agente. Em casos de candidíase urinária, indica-se anfotericina, fluconazol ou até flucitosina, que têm boa penetração renal.
Independentemente do antimicrobiano escolhido, é essencial acompanhar a evolução clínica. A melhora do estado geral e a queda da febre nas primeiras 48 a 72 horas indicam resposta adequada. Se não houver melhora nesse período, a urocultura deve ser revisada para possível ajuste da terapia.
Sempre que possível, principalmente em neonatos e pacientes graves, o tratamento deve ser monitorado com níveis séricos das medicações para minimizar a toxicidade, especialmente a nefrotoxicidade associada a alguns antibióticos.
Ele consiste no uso contínuo de antibióticos em doses baixas, com o objetivo de evitar novas infecções e, assim, reduzir o risco de lesões permanentes nos rins. A ideia é manter a urina estéril durante um período de maior vulnerabilidade. No entanto, o tema ainda é controverso: há estudos que mostram redução nas recorrências, mas sem impacto significativo na formação de cicatrizes renais.
A profilaxia costuma ser indicada nas seguintes situações:
Os antibióticos mais utilizados são a nitrofurantoína e a combinação sulfametoxazol + trimetoprim. Ambos são considerados seguros, embora a nitrofurantoína possa causar desconforto gástrico no início. Vale lembrar que esses medicamentos não devem ser usados nos primeiros dois meses de vida. Para os recém-nascidos, quando necessário, opta-se por cefalosporinas de primeira geração até que o bebê complete 2 meses.
O uso da profilaxia contínua deve ser ponderado em relação ao potencial surgimento de germes multirresistentes e aos efeitos adversos na microbiota intestinal,estudos indicam que a profilaxia reduz significativamente o risco de ITU sintomática, porém não impactando no surgimento de novas cicatrizes.
A infecção do trato urinário na infância é um daqueles diagnósticos que exigem atenção aos detalhes, olhar clínico apurado e conhecimento das nuances por faixa etária. Reconhecer os sinais precoces, saber quando e como investigar e oferecer um tratamento adequado fazem toda a diferença para o prognóstico renal da criança.
Portanto, da próxima vez que estiver diante de uma criança febril sem causa aparente, lembre-se: o rim pode estar gritando socorro — só que em silêncio.
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Professora da Medway. Formada em Medicina pela Faculdade de Medicina de Catanduva (FAMECA), com residência em Pediatria pela Escola Paulista de Medicina/Univerisdade Federal de São Paulo (EMP-UNIFESP). Siga no Instagram: @pucca.medway