Meningoencefalite criptocócica: tudo que você precisa saber

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Fala, mediciners! Como estão? Hoje é dia de falar de um assunto que devemos dominar, a meningoencefalite criptocócica.

Moramos em um país onde a meningite ainda é uma doença com alta prevalência e, por isto, nosso grau de suspeição sempre deve ser alto: pacientes com a tríade febre, cefaleia e rigidez de nuca mandatoriamente devem ser investigados para esta doença (e pasme, 95% dos pacientes apresentam pelo menos 2 destes 3 sintomas). 

Os dois principais agentes são os conhecidos Neisseria meningitidis e o Streptococcus Pneumoniae. Isto considerando pacientes imunocompetentes. Mas hoje nossa abordagem será em torno da meningite criptocócica, causada pelo Cryptococcus Neoformans, uma importante etiologia quando falamos de pacientes imunocomprometidos. 

E aqui um primeiro ponto: o correto é falarmos meningoencefalite criptocócica, visto que na grande maioria dos casos não só a meninge, mas também o parênquima encefálico, é acometido. 

O segundo ponto importante é que você verá esta patologia principalmente em imunocomprometidos graves, onde a contagem de CD4 encontra-se < 100 céls/mm3 (90% dos casos). 

Manifestações clínicas

Se você não leu, leia nosso texto sobre criptococose pulmonar, pois o mais comum é que o paciente tenha inicialmente acometimento pulmonar pelo Cryptococcus e posteriormente a infecção torna-se disseminada, atingindo o sistema nervoso central. 

Por isto, sintomas como febre, tosse e dispneia podem estar presentes nas fases iniciais da doença. Os achados de meningoencefalite costumam ocorrer após um período de 1-2 semanas, sendo comuns os achados de febre persistente e cefaleia (lembra da nossa tríade?). 

Cerca de 25-30% dos pacientes irão se apresentar com rigidez no pescoço, fotofobia e vômitos. 

No nosso exame físico, achados de acometimento encefálico podem ser vistos, desde letargia e confusão mental até déficits focais. Os achados de exames laboratoriais são inespecíficos.

A  mensagem é: paciente com imunossupressão importante (exemplo: PVHIV com CD4 < 100 céls./mm3) com febre e cefaleia devem obrigatoriamente ser investigados para meningite/meningoencefalites!

Diagnóstico da meningoencefalite criptocócica

O exame de triagem inicial e preferencial para detecção de Cryptococcus Neoformans é o antígeno criptocócico sérico, estando positivo virtualmente em todos os casos de infecção nos PVHIV. Contudo o diagnóstico definitivo necessitará da visualização deste fungo no líquido cefalorraquidiano (LCR), obtido através da punção lombar

Punção Lombar

Se estamos falando de infecção do sistema nervoso central, com certeza a punção lombar se mostra como exame indispensável para nossa avaliação. Com certeza o ponto crucial antes de proceder puncionando todo mundo é saber as contraindicações absolutas à punção lombar:

  • plaquetopenia < 50-80.000;
  • INR > 1,4;
  • suspeita de hipertensão intracraniana (HIC) com ≥ 1 destes: alteração de nível de consciência, sinais neurológicos focais, papiledema, convulsão na semana anterior, imunocomprometimento (atente para este último!);
  • sinais infecciosos no local da punção.

No caso de pacientes com plaquetopenia ou diátese hemorrágica, devemos consultar um hematologista e ponderar risco e benefícios da punção. No caso de suspeita de HIC com algum dos achados, um exame de neuroimagem se faz obrigatório para avaliação, pois a punção lombar em regimes de HIC pode levar a herniação cerebral e morte!

Perfeito, neste momento descartamos as contraindicações, procedemos com a técnica de punção lombar adequada e vamos analisar o quê? Vamos pedir o que nesse líquor? Bota no teu papel: solicitar perfil do LCE (no mínimo celularidade, glicose e proteína), cultura para fungo, coloração com tinta nanquim, antígeno criptocócico. 

O primeiro insight que quero te dar é que, quando falamos de diagnóstico rápido, conhecemos muito a tinta nanquim (tinta da China) para coloração do líquor diagnóstico de Cryptococcus, não é? 

Mas não é o melhor teste para tal. Enquanto a tinta tem uma sensibilidade que varia entre 42-60% dependendo da carga de microorganismos, o antígeno criptocócico no líquor tem sensibilidade que beira 93-100%. Sendo assim, para diagnóstico rápido o antígeno criptocócico é muito superior à tinta nanquim. 

Fico repetindo rápido, pois é claro que a cultura é um excelente método, mas leva cerca de 3-7 dias para ficar pronta, e no caso de uma meningoencefalite, obviamente, queremos um diagnóstico de prontidão.

Na suspeita de meningoencefalite criptocócica esperamos, classicamente, um LCR com predomínio linfomononuclear, proteína levemente elevada e glicose baixa ou normal. Em cerca de 30% dos casos podemos ter um LCR completamente normal!

Cryptococcus Neoformans em tinta Nanquim. Fonte: https://radiopaedia.org/cases/cryptococcus-3?lang=us

Antígeno Criptocócico

Se você leu nosso texto de criptococose pulmonar, percebe que o antígeno criptocócico é a grande estrela tanto na doença pulmonar, quanto na meningoencefalite criptocócica. 

Se você coletou o LCR e o antígeno criptocócico veio positivo, isto é evidência suficiente e de sobra para que você inicie o tratamento dos pacientes. Mas se por algum motivo você não coletou o LCR (seja por contraindicação, seja por não haver ninguém para coletar), como você deve proceder? 

O ideal seria a coleta do antígeno criptocócico sérico e, em caso positivo, você teria dois cenários:

  • pacientes sintomáticos: no caso de PVHIV com sintomas de acometimento do sistema nervoso central, está indicado iniciarmos o tratamento;
  • pacientes assintomáticos: no caso dos assintomáticos, com imunossupressão grave, está indicado iniciarmos terapia preventiva para reduzir o risco de doença sintomática.

Considerações em ambientes com poucos recursos

Em locais onde não temos tanta disponibilidade, algumas considerações devem ser feitas. Primeiro no que tange a neuroimagem: sabemos que nem todos os locais possuem uma tomografia computadorizada (TC) ou ressonância magnéticas (RNM) disponíveis e, por isto, os riscos e benefícios da punção lombar sem neuroimagem são favoráveis. 

Contudo, se não houve disponibilidade de LCR ou houve contraindicação ao LCR (que não às que podem ser mitigadas com neuroimagem), deve-se proceder com a solicitação do antígeno criptocócico sérico: em caso positivo, instituir o tratamento e em caso negativo o correto é não instituir o tratamento e encaminhar o paciente para um ambiente apropriado para a investigação.

Prognóstico da meningoencefalite criptocócica

Os principais fatores prognósticos associados à mortalidade durante as primeiras semanas de tratamento são: alteração do estado mental, antígeno criptocócico no líquor > 1:4000 (ensaio de fluxo lateral) e/ou leucócitos no LCR < 20

Prevenção

Mais do que tratar, queremos prevenir nosso paciente de apresentar formas sintomáticas da infecção. Obviamente, estamos falando de pacientes assintomáticos, então o primeiro passo é definirmos quem são os pacientes que devem ser rastreados para a infecção criptocócica. 

Os pacientes que se beneficiam desta estratégia são aqueles com CD4 < 100-200 que não fazem uso de terapia antirretroviral (TARV). Para estes pacientes, está indicado a triagem com antígeno criptocócico sérico. Caso venha negativo, não há indicação de terapia antifúngica e iniciaremos a TARV para os pacientes.

No caso de antígeno criptocócico sérico positivo, devemos fazer anamnese e exame físico minuciosos em busca de sinais e sintomas sugestivos de infecção, bem como da punção lombar (sim! independente de sintomas), pois, caso estejam presentes, iniciaremos o tratamento e não a prevenção. Como procederemos então? 

Neste momento já estamos de posse da anamnese, exame físico e coletamos o líquor do paciente. O primeiro passo é olhar a titulação do antígeno criptocócico:

  • se < 1:160, iniciaremos empiricamente fluconazol 400mg/dia;
  • se ≥ 1:160, iniciaremos indução com anfotericina B.

Realizamos esta terapia empírica até o retorno dos resultados do LCR. Nossa conduta, então, será baseada conforme os resultados deste:

  • em caso de LCR negativo (antígeno e culturas para Cryptococcus), mantemos terapia antifúngica com fluconazol 400mg/dia e iniciamos a TARV. O fluconazol será mantido até CD4 > 100 células por pelo menos 3 meses;
  • em caso de LCR positivo (antígeno ou cultura), os pacientes serão tratados para meningoencefalite criptocócica. 

No caso de locais com recursos limitados, onde a punção lombar não está disponível, nosso manejo será baseado na titulação do antígeno sérico. Se < 1.160, iniciaremos fluconazol 400mg/dia e a TARV duas semanas após o início. Se ≥ 1:160, iniciaremos a terapia de indução com Anfotericina B e a TARV 2-4 semanas após o início.

Tratamento da meningoencefalite criptocócica

Com certeza uma das primeiras coceiras que há é a vontade de passar corticoide por conta do quadro de meningoencefalite, mas calma, não há indicação para uso deste no caso da meningite criptocócica, diferentemente do visto em outras etiologias!

Terapia Antifúngica

A terapia é dividida em 3 fases: (1) indução por duas semanas, (2) consolidação por oito semanas e (3) manutenção por pelo menos 12 meses.

A terapia de indução deve, preferencialmente, ser realizada com Anfotericina B lipossomal (3-4 mg/kg/dia EV) mais flucitosina (100mg/kg VO dividido em 4 doses diárias). Os pormenores: a flucitosina necessita de ajuste para função renal, e em caso de sua indisponibilidade, podemos substituir por fluconazol 800 mg/dia VO ou EV. 

No caso de indisponibilidade da Anfotericina B lipossomal, podemos lançar mão da Anfotericina B Complexo Lipídico (5mg/kg/dia EV) ou Anfotericina B deoxicolato (0,7mg/kg/dia EV). A duração deve ser de no mínimo 2 semanas e em caso de não melhora clínica, este tempo pode ser estendido.

A consolidação deve ser realizada com Fluconazol, por um mínimo de 8 semanas. Usamos a dose de 400 mg/dia naqueles que fizeram uso de flucitosina durante a terapia de indução e 800 mg/dia nos que não o fizeram.

Por fim, a terapia de manutenção deve ser realizada com fluconazol 200mg/dia por um período mínimo de 1 ano. Após este período, podemos suspender o fluconazol em pacientes que já aderiram a TARV, possuem carga viral indetectável e apresentam CD4 > 100.

Em alguns casos temos uma limitação importante de recursos e é importante deixarmos as opções consideradas de primeira linha, para indução, pela OMS, visto que nosso Brasil as vezes carece de recursos de saúde em muitos locais:

  1. se a flucitosina está disponível
  • Preferência: Anfotericina B deoxicolato (1mg/kg/dia) + flucitosina (100mg/kg/dia dividido em 4 doses diárias) durante uma semana. Na outra semana será feito fluconazol 1.200mg/dia.
  • Alternativa: Fluconazol 1.200mg/dia com flucitosina 100mg/kg/dia (dividido em 4 doses) por 2 semanas
  1. se a flucitosina está indisponível
  • Anfotericina B deoxicolato 1mg/kg/dia com fluconazol 1.200mg/dia durante 2 semanas.

Quando iniciar a TARV?

Sabemos que em alguns cenários o início precoce da TARV pode levar a Síndrome de Reconstituição Imune (SRI) e a meningoencefalite criptocócica entra nestes casos, sendo ainda mais catastrófico pensar nesta reconstituição envolvendo o SCN. Por isso, é indicado que a TARV seja iniciada 2-10 semanas após o início da terapia antifúngica.

É isso, gente!

Finalizamos um assunto de extrema relevância quando tratamos da população imunocomprometida. Este diagnóstico deve ter elevada suspeição no seu hall de diagnósticos diferenciais. 

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Referências

  1. Velasco, I., Neto, R., Souza, H., Marino, L., Marchini, J. and Alencar, J., 2021. MEDICINA DE EMERGÊNCIA – ABORDAGEM PRÁTICA. 15th ed. São Paulo: Manole, pp.426-437.
  2. UpToDate. Uptodate.com. Disponível AQUI: <Acesso em: 15  Abr.  2022.>
  3. UpToDate. Uptodate.com. Disponível AQUI: <Acesso em: 15  Abr.  2022.>
  4. UpToDate. Uptodate.com. Disponível AQUI: <Acesso em: 15  Abr.  2022.>

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RodrigoFranco

Rodrigo Franco

Paraense, forjado em 1990. Residência em Clínica Médica pelo Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE). Neto de professor que me transferiu o amor pelo magistério. Apaixonado pelo raciocínio clínico, por uma boa resenha, viagens e novas experiências. Siga no Instagram: @rodrigocfranco