Dengue hemorrágica: sintomas, tratamento e prevenção

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Fala pessoal, firmeza? O tema do texto de hoje é de uma importância absurda para o médico que trabalha no pronto atendimento Brasil afora! Vivemos em um país tropical e em boa parte do território, as arboviroses, como a dengue, são patologias muito prevalentes no dia a dia. E o que eu quero aqui é te fazer seguir um passo a passo para evitar que os casos evoluam para a temida dengue “hemorrágica” (dengue grave) e te ajudar a manejar aqueles que, infelizmente, já estão graves! Bora lá?

Primeiro de tudo, precisamos de conceitos!

O que é a dengue?

O mosquito Aedes Aegypti, causador da dengue hemorrágica
O Aedes Aegypti

Dengue é uma arbovirose (a mais comum delas, inclusive) transmitida pela picada do mosquito Aedes aegypti, com transmissão em nível urbano bem definida. Isso ocorre especialmente em épocas chuvosas, nas quais se multiplicam os recipientes e ambientes com água parada, propícios à proliferação da larva do mosquito. A infecção do Aedes adulto ocorre quando ele pica uma pessoa infectada.

O que é a Dengue “hemorrágica”?

Na verdade, esse termo vem sendo substituído pelo conceito de dengue grave, mas de modo geral, define o espectro mais avançado da patologia, no qual há grande perda de líquidos para terceiro espaço, além de propensão a sangramentos de maior importância clínica e hemodinâmica.

A fisiopatologia é o cerne de tudo, não tem jeito!

Galera, para entender o que é a “dengue hemorrágica” ou mais atualmente, a dengue grave, temos que dominar, basicamente, os efeitos que o vírus da dengue, um representante da família Flaviviridae, tem sobre nosso organismo!

De um modo geral, para sermos bem objetivos, ele consegue:

1) Atacar, por ação direta, as células de órgãos e tecidos, como o fígado, os músculos, e o SNC.

  • Aqui vale ressaltar que o vírus da Dengue tem avidez por penetrar macrófagos do sistema retículo endotelial, o que permite tanto sua disseminação pelo corpo, quanto seu acometimento localizado, a nível hepático, por exemplo.

2) Gerar reação inflamatória intensa que culmine em grande aumento de permeabilidade vascular, a ponto de extravasar plasma e reduzir o volume circulante efetivo, comprometendo a perfusão orgânica de modo difuso. Isso também justifica a possibilidade de derrames cavitários ao longo da evolução do quadro.

Já já iremos classificar as 3 fases e os 3 espectros de gravidade da doença, definidos atualmente pelo Ministério da Saúde e você verá como tudo faz mais sentido.

E como identificar um caso suspeito de dengue?

Em áreas endêmicas, como boa parte do território nacional, qualquer quadro de febre de início súbito, geralmente elevada (em torno de 39–40º C), com duração menor que 7 dias, associado a pelo menos dois dos seguintes sintomas, deve ser definido como caso suspeito:

  • cefaleia (tipicamente descrita como retroorbitária);
  • mialgia (intenso tropismo viral por células musculares);
  • artralgia;
  • rash cutâneo, que aparece em cerca de 50% dos pacientes, tipo maculopapular e que não poupa palmas nem plantas e tende a surgir junto com a defervescência (3° a 4º dia de evolução);
  • náuseas e vômitos;
  • diarreia (3 a 4 vezes ao dia, diferente das demais “GECAs”, que têm frequência de evacuações até o dobro disso);
  • petéquias;
  • prova do laço positiva (fazer para todo caso em que não haja manifestação hemorrágica espontânea — se já há petéquias, já definiu-se a fragilidade capilar, então esta manobra perde o sentido);
  • leucopenia (lembre-se que leucocitose com desvio fala contra dengue);

Definido caso suspeito, precisamos entender que a dengue evolui em, basicamente, três fases, mas o mais importante é conhecer os “espectros”  em que podemos nos deparar com a doença. Vem comigo!

O Ministério descreve a história natural da doença nas fases: febril, crítica e de convalescença

Só que considero mais importante que você domine os 3 “espectros” de gravidade da doença: caso suspeito sem sinais de alarme, caso suspeito com sinais de alarme e caso suspeito de dengue grave. Por que coloquei caso suspeito? Porque não vamos esperar confirmação laboratorial para tratar e, nos casos leves, há situações em que sequer pediremos exames laboratoriais para tratarmos como caso confirmado.

Só pra deixar claro, a chamada fase febril engloba os 3–4 primeiros dias, nos quais se definem os casos suspeitos, como vimos acima. Passada essa fase, o paciente começa a resolver a febre, podendo evoluir bem, ou então se inicia a curva de piora, com os sinais de extravasamento de líquido para terceiro espaço, por aumento de permeabilidade capilar e com o dano direto aos órgãos e tecidos se manifestando, como descrevemos acima, na fisiopatologia.

Inicia-se, então, a fase crítica, que é aquela definimos os outros dois “estágios evolutivos” da doença, baseando-nos no surgimento dos:

–        Sinais de alarme (que devem estar na ponta da língua para vida e para as provas de Residência) → Chamaremos de dengue com sinais de alarme

–        Sinais de choque ou sangramento importante, → Chamaremos de dengue grave (a antiga “dengue hemorrágica”).

Neste momento, entender a dinâmica de evolução da doença é crucial, então vamos sistematizar:

●       Casos suspeitos: febre + 2 ou mais dos outros sintomas já descritos acima.

●       Dengue com sinais de alarme: caso suspeito que evolui com as seguintes manifestações:      

–  Por perdas para terceiro espaço e baixo volume circulante efetivo:

○       Hemoconcentração: aumento de Hematócrito

○       Hipotensão ou sensação de lipotímia

○       Derrames cavitários (ascite, derrame pleural)

– Por dano tecidual pela presença do vírus:

A dor abdominal é um dos sintomas da dengue hemorrágica
Fonte: Tua Saúde

○       Dor abdominal referida ou à palpação

○       Hepatomegalia > 2cm

○       Vômitos persistentes

○       Letargia/irritabilidade (sempre ficar atento à irritabilidade em crianças!)

– Por plaquetopenia e fragilidade capilar

○       Sangramento mucoso

Por favor, pessoal, façam um esforço para memorizar estes sinais e buscá-los nos casos suspeitos. Identificá-los de modo correto permite direcionar o tratamento e isso pode ser crucial para a manutenção da vida de seus pacientes!

Dengue grave: o espectro final da doença

Aqui, eleva-se ao último grau os desarranjos causados pelo vírus:

1) por perdas para terceiro espaço e baixo volume circulante efetivo: SINAIS DE CHOQUE!

  • hipotensão;
  • taquicardia;
  • perfusão lentificada ou cianose;
  • pulsos finos;
  • oligúria;

2) por dano tecidual pela presença do vírus:

  • miocardite;
  • encefalite;
  • hepatite;

3) por plaquetopenia e fragilidade capilar:

  • sangramento de SNC;
  • hemorragia digestiva de grande monta;
  • sangramento genitourinário de grande monta.

Passada a fase crítica, aqueles que evoluem de forma favorável iniciam a fase de convalescença, com melhora gradativa dos sinais e sintomas, mas isso é meio intuitivo, por isso digo que tem menor relevância prática, concordam?

Beleza, fiz o panorama dos “momentos” em que podemos “enxergar” o paciente com dengue na emergência.

Como confirmá-los?

Podemos solicitar testes que identifiquem o vírus, como o RT-PCR, cultura, ou mais comumente a pesquisa do NS1 (antígeno viral), até o quinto dia, embora o maior rendimento deste exame seja até o terceiro dia de doença. A partir do sexto dia, o exame confirmatório é o IgM contra o vírus, considerando que a viremia cai bastante nesse período para procurarmos por antígeno circulante.

Como eu disse, nem sempre precisamos solicitar exames confirmatórios. Descrevendo os grupos de tratamento vou explicar quando precisamos solicitar tais exames. Vem comigo e confia!

Como conduzir pacientes com dengue?

Há 3 passos essenciais para o manejo correto.

1) Todo caso suspeito de dengue é de notificação compulsória! Não vacila nisso, pessoal!

2) Pela plaquetopenia e fragilidade capilar, o uso de AAS e AINES é contraindicado na dengue, devido às suas conhecidas propriedades antiplaquetárias, que exacerbam risco de sangramento

3) Defina o Grupo Operacional! Esse é o divisor de águas do tratamento!

O Ministério criou os grupos operacionais para facilitar a abordagem. Então, bora defini-los:

Grupo A:

–        Caso suspeito SEM sinais de alarme E SEM fatores de risco para gravidade:

Sinais de alarme você já sabe quais são (aqui cabe aquela revisada rápida, por favor), mas quais são os fatores de risco?

–        Gestantes

–        < 2 e > 65 anos

–        Comorbidades de repercussão sistêmica (IC, DRC, DPOC, DM2, HAS, Hematológicas – falciformes, doenças autoimunes)

–        Pacientes em situação de vulnerabilidade (situação de rua, por exemplo)

–        Prova do laço positiva ou presença de petéquias.

Qualquer um desses fatores, NA AUSÊNCIA DE SINAIS DE ALARME  coloca o paciente como grupo B.

Para grupo A, em nível Ambulatorial:

–        Hidratação VO: 60ml Kg/dia, sendo ⅓  obrigatoriamente de solução salina (Soro de reidratação oral) e ⅔ de líquidos comuns (água, sucos de fruta, soro caseiro, água de coco) – manter até 24 – 48h após defervescência (lembre-se que esse é o momento de início da fase crítica)

–        Manter dieta conforme aceitação.

–        Antitérmicos comuns (paracetamol ou dipirona)

–        Reavaliação no momento de defervescência ou imediatamente se surgir  qualquer sinal de alarme!

Para o grupo B, precisamos de solicitar Hemograma, que, idealmente, deve ter resultado em até 2 horas! E o paciente, enquanto espera o resultado, já é tratado com o mesmo esquema de hidratação do grupo A.

–        Se não houver hemoconcentração

–        (Ht < 46±7 para Homens e 42±6 para mulheres não idosos – há variação marcante nesses cortes por idade!): tratar igual ao grupo A.

–        Se houver hemoconcentração, define-se um sinal de alarme e automaticamente o paciente é conduzido como grupo C!

Grupo C: caso suspeito COM sinais de alarme (revise de novo, não custa nada), ou grupo B que apresentou hemoconcentração na avaliação laboratorial.

–        Tratamento feito em regime de internação em enfermaria, com:

–        Expansão: 20ml/Kg em 2 horas (10 ml/Kg/h) de solução salina EV – .

–        Avaliação clínica ao fim da primeira hora de expansão.

–        Avaliação clínica + hemograma após 2ª hora (fim dos “primeiros” 20 ml/Kg):

–        Se mantém sinais de baixo volume circulante efetivo  OU hemoconcentração → Fazer mais 1 ou 2 fases de expansão com 20ml/Kg em 2 horas, totalizando no máximo 3 dessas fases e avaliando, ao final de cada uma delas, da forma descrita neste tópico.

Analisando a evolução, temos:

–        3 fases de expansão sem sucesso: conduzir como grupo D.

–        Melhora hemodinâmica após 1, 2 ou as 3 expansões, iniciar fase de manutenção, com

–        25 ml/Kg EV em 6 horas → Mantida curva de melhora, realizar mais:

–        25ml/Kg EV em 8 horas (⅓ SF e ⅔ SG 5%).

Em caso de melhora, manter em hidratação oral e observação clínica por pelo menos 48h, antes da alta.

Grupo D: caso suspeito COM sinais de choque OU disfunção orgânica grave OU sangramento grave (a “antiga Dengue hemorrágica”).

–        Tratamento em regime de Terapia INTENSIVA

Fonte: Medicina SA

–        Expansão rápida: 20ml/Kg em 20 MINUTOS!

–        Reavaliar clinicamente a cada 15 a 30 minutos e com hemograma a cada 2 horas.

–        Repetir tal esquema de expansão também em até 3 vezes.

–        Se melhora clínica E laboratorial, conduzir como grupo C.

–        Se não houver sucesso, avalie comportamento do hematócrito:

–        Aumento de Ht COM  Choque: albumina 0,5 – 1 g/Kg (albumina 5% – para cada 100 ml desta solução, usar 25 ml de albumina a 20% e 75 ml de SF a 0,9%) ou colóides 10ml/Kg/h.

–        Queda de Ht COM choque: avaliar hemorragias e CIVD:

–        Se hemorragia: transfusão de hemáceas: CH 10-15mL/Kg

–        Se CIVD: Plasma fresco congelado 10mL/Kg), Vit. K e crioprecipitado 1U para 5-10Kg  de peso), conforme necessidade.

–        Queda de Ht SEM hemorragia ou CIVD

–        Provável IC, se instabilidade hemodinâmica

–        Hemodinâmica estável: melhora clínica!

UFA!

E agora alguns conceitos finais!

Para grupos A e B, só é necessário solicitar exame confirmatório em situações fora de epidemias. Neste último cenário, basta o diagnóstico clínico-epidemiológico.

Para grupos C e D, sempre solicitamos exames confirmatórios, conforme dinâmica laboratorial já citada acima e reforçada em tabela a seguir (que aliás, traz uma sistematização de tudo que conversamos!):

Tabela sistematizando tudo que falamos sobre a dengue hemorrágica

Fonte: Dengue : diagnóstico e manejo clínico : adulto e criança [recurso eletrônico] / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. – 5. ed. – Brasília : Ministério da Saúde, 2016.

Percebeu que o pico do NS1 no sangue é compatível com o período de maior viremia e que a queda desses níveis nos conduzem a solicitação do IgM, a partir do 6º dia, conforme vemos seus títulos crescendo?

Por fim, também nos grupos C e D vamos pedir, além de exame confirmatório, exames inespecíficos para definir comprometimento orgânico, como AST e ALT, Hemograma, Albumina sérica, USG de abdome e Radiografia de Tórax (para definir derrames cavitários).

Outro ponto que quero chamar a atenção é que, na grande maioria dos casos, os derrames cavitários não se dão por IC, mas sim pela perda do efeito de barreira capilar, causado pelo aumento de permeabilidade do endotélio e, de modo geral, não devemos restringir líquidos na presença de um derrame pleural, por exemplo, pois manter o volume circulante efetivo adequado é simplesmente crucial na manutenção das funções orgânicas e perfusão tecidual no paciente com Dengue, fechou?

Claro que essa orientação deve ser relativizada se o paciente tem IC prévia ou tem sinais de miocardite, por exemplo.

Espero que tenha sido esclarecedor e ficam aqui 5 recados desse texto, que desejo do fundo do coração que você leve para sempre:

1) Suspeitou de dengue, notifique e não dê AAS ou AINES.

2) Traga os sinais de alarme na ponta da língua para o Pronto Socorro (e para as provas de Residência também)

3) Lembre que a resolução da febre é o momento em que se iniciam os casos graves, naqueles que vão evoluir dessa maneira.

4) Diminua a ênfase dada a plaquetopenia nos casos de dengue e valorize os sinais clínicos de alarme (Hemoconcentração é mais importante que plaquetopenia!) e de gravidade!

5) A hidratação salva vidas no paciente com dengue.

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Então é isso, aquele abraço e até a próxima!

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LucasFaria

Lucas Faria

Mineiro de Uberlândia, nascido em 1995, formado pela Universidade Federal de Uberlândia. Residência em Clínica Médica no Hospital de Clínicas da USP de Ribeirão Preto.