Encefalite autoimune: você sabe identificá-la?

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Fala, galera! Já ouviram falar de encefalite autoimune? É um conjunto de distúrbios neurológicos que têm sido cada vez mais reconhecidos na prática diária do neurologista. 

Como a sua apresentação é aguda a subaguda (ou seja, ao longo de dias a poucas semanas), é frequente a passagem por serviços de emergências, pelos quais vocês devem trabalhar! 

Sendo assim, vale a pena reconhecer as principais manifestações clínicas dessas condições tão desafiadoras e ainda em descoberta. Acompanhem nosso guia sobre o assunto! 

Descomplicando alguns termos

Os termos “síndrome paraneoplásica”, “encefalite autoimune” e “encefalite paraneoplásica” são usados de forma equivocada, em grande parte, rotineiramente. Sendo assim, entenda melhor esses termos logo abaixo.

A neurologia autoimune compreende as doenças autoimunes que acometem o sistema nervoso (tanto central, como periférico e autonômico) por anticorpos identificados ou suspeitos (ou seja, o principal é que você tenha a hipótese!), podendo ser associada ou não a neoplasias. Acometem cerca de 1 a cada 300 pacientes com câncer.

Terminologia

  • Associada à neoplasia = síndrome paraneoplásica (ocorre por quebra de imunotolerância) → portanto, nem todas são paraneoplásicas;
  • Não associada à neoplasia = doença autoimune (desencadeada por infecção ou outros gatilhos).

Nas encefalites autoimunes paraneoplásicas, 2/3 dos casos ocorrem antes do diagnóstico da neoplasia. Então, se não encontrar uma neoplasia na apresentação clínica, saiba que ela pode aparecer depois!

Informação importante: infrequentemente, a apresentação clínica prediz um único anticorpo que pode ser identificado (geralmente, representa a manifestação de um grupo deles).

Normalmente, os anticorpos estão presentes no líquor e no soro. No entanto, alguns deles são mais sensíveis no líquor, e outros deles mais sensíveis no soro… Então, pesquisem os anticorpos em ambos!

Você sabe diferenciar encefalite autoimune de meningite?

O termo “meningoencefalite” é usado, na prática, para pacientes com meningite e algum comprometimento do nível de consciência, assim como para paciente com encefalite e comprometimento meníngeo concomitante. 

Ou seja, o termo “meningoencefalite” denota comprometimento tanto meníngeo como encefálico, e isso é o mais comum. Vamos explorar melhor esses termos.

  • Meningite → inflamação das meninges.
Encefalite → inflamação do parênquima encefálico.
  • Encefalite → inflamação do parênquima encefálico.
Meningoencefalite → meningite + encefalite.
  • Meningoencefalite → meningite + encefalite.

Porém, tenho certeza de que vocês já sabem que não raciocinamos e abordamos meningites em conjunto com encefalites. Apesar de meningites geralmente virem acompanhadas de algum comprometimento encefálico e encefalites com algum componente meníngeo, mais importante do que saber que há acometimento de ambos os “compartimentos” é saber qual é a manifestação predominante. Ora, as meningites são abordadas e têm agentes etiológicos diferentes das encefalites e, por isso, a investigação e o tratamento são, também, diferentes.

Para saber qual o comprometimento principal (meníngeo ou encefálico), vocês devem ficar atentos à clínica predominante. As meningites se apresentam principalmente com cefaleia, náuseas, vômitos, fotofobia e sinais meníngeos. Já as encefalites têm como principais sintomas o rebaixamento do nível de consciência, alteração comportamental, crise epiléptica e déficits focais.

Em resumo:

Atenção à manifestação clínica predominante da encefalite autoimune!

Atenção à manifestação clínica predominante!

Além disso, apesar do termo “encefalite autoimune” compreender principalmente as manifestações encefálicas de fisiopatologia autoimune, as manifestações imunomediadas do sistema nervoso são muito mais amplas. Por isso, falaremos a seguir sobre os principais fenótipos de doenças autoimunes neurológicas e os principais anticorpos associados – uma verdadeira “sopa de letrinhas”!

Síndromes clássicas e possíveis neoplasias associadas

Encefalomielite

Grupo heterogêneo que cursa com lesões multifocais no sistema nervoso central. Quase sempre associada a carcinoma de pequenas células do pulmão e anticorpos anti-Hu ou anti-CRMP5.

Encefalite límbica

Caracterizada por síndrome amnéstica, crises epilépticas e/ou alteração comportamental com evolução subaguda (menos de 3 meses). A maior parte desses casos é causada por anticorpos de superfície (principalmente anti-LGI-1 e anti-CASPR2) e, portanto, não associada a câncer. 

No entanto, menos comumente, alguns anticorpos causadores são quase sempre associados a câncer e, por isso, é considerada um fenótipo de alto risco. 

Os anticorpos mais associados à síndrome paraneoplásica são anti-GABAb, anti-AMPA, anti-Hu e anti-Ma2.

Síndrome cerebelar rapidamente progressiva

Antigamente chamada “degeneração cerebelar paraneoplásica”, é caracterizada por uma síndrome cerebelar global de evolução subaguda. É frequentemente associada a anticorpos anti-Yo (especialmente em neoplasias ginecológicas) e anti-Tr (também chamado anti-DNER).

Síndrome opsoclonus-mioclonus

As manifestações clínicas cardinais dessa síndrome são mioclonia de ação e opsoclônus, que são movimentos sacádicos multidirecionais sem intervalo interssacádico. Outros achados possivelmente associados são ataxia e encefalopatia. 

Há duas etiologias principais: idiopática (pós-infecciosa) e paraneoplásica. Os casos paraneoplásicos em crianças são causados majoritariamente por neuroblastoma; e em adultos, por carcinoma de pequenas células de pulmão e câncer de mama (nesses casos, o anticorpo mais associado é o anti-Ri).

Neuronopatia sensitiva (ou ganglionopatia)

O acometimento do gânglio da raíz dorsal se manifesta tipicamente com ataxia sensitiva e reflexos osteotendíneos abolidos de instalação subaguda. Há diversas etiologias potenciais, como síndrome de Sjogren, efeito colateral de quimioterápicos, intoxicação por piridoxina e síndrome paraneoplásica principalmente por anticorpos anti-Hu, anti-CRMP5 e antianfifisina.

Pseudo-obstrução intestinal (neuropatia entérica)

É caracterizada por episódios recorrentes de dor e distensão abdominal, constipação e/ou vômitos, sem evidência de obstrução intestinal mecânica. O anticorpo anti-Hu é associado aos casos paraneoplásicos, e o anticorpo antirreceptor gangliônico de acetilcolina aos casos não paraneoplásicos.

Síndrome de Lambert-Eaton

Esse fenótipo é caracterizado por fraqueza proximal progressiva associada a sintomas autonômicos e abolição de reflexos osteotendíneos, que reaparecem após esforço repetitivo. Os anticorpos encontrados são anti-VGCC tipo P/Q e, principalmente anti-SOX1, fortemente associada a carcinoma de pulmão de pequenas células.

Como é o diagnóstico de encefalite autoimune?

O diagnóstico das manifestações neurológicas autoimunes depende da associação de:

  • síndrome clássica (principal) +;
  • possível associação com neoplasia +;
  • base imunomediada (alterações no líquor, como: pleocitose discreta e/ou aumento de proteína e/ou aumento do índice de IgG ou presença de bandas oligoclonais).

No entanto, perceba que a presença de anticorpos não é necessária para conduzir esses casos… Se você conseguir identificar uma síndrome clínica clássica, pode (e deve) manejar de acordo como uma doença autoimune possível. Ora, esses exames não estão disponíveis na maior parte dos centros e, mesmo que disponíveis, os resultados podem demorar semanas para saírem.

Qual é o tratamento de encefalite autoimune?

O tratamento das encefalites autoimunes é baseado em três pilares:

  • Tratamento sintomático;
  • Tratamento da fase aguda → feito com imunoterapia;
    • 1ª linha: pulsoterapia com metilprednisolona + imunoglobulina humana +/- plasmaférese;
    • 2ª linha: ciclofosfamida e/ou rituximabe.
  • Tratamento da neoplasia → conforme protocolos oncológicos, caso a síndrome seja associada a neoplasia.

Agora você é capaz de identificar as principais manifestações neurológicas autoimunes, especialmente as paraneoplásicas. 

Se liga nos demais textos sobre neurologia de emergência se você curte o tema: AVCi, AVCh intraparenquimatoso, hemorragia subaracnoide!

Não deixe de comentar e deixar suas dúvidas ou elogios: ambos serão muito bem-vindos. Pra cima!

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Caio Disserol

Paranaense nascido em 1990. Formado pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC-PR) de Curitiba em 2014. Residência em Neurologia pelo Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Palo (HCFM-USP), concluída em 2019. No HCFM-USP, experiência como preceptor dos residentes entre 2019-2020. Concluiu um fellowship em Neuroimunologia em 2021. Experiência como médico assistente do departamento de Neuropsiquiatria do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (HC-UFPR). "As doenças são da antiguidade e nada se altera sobre elas. Somos nós que mudamos na medida em que estudamos e aprendemos a reconhecer o que antes era imperceptível."