Torsades de Pointes: a mais elegante das arritmias

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Fala, pessoal! Hoje o tema é Torsades de Pointes (Se você quiser ler com sotaque francês seria algo como: “Torsedes de Poãnt”). Sei que é um tema específico, mas pode sim aparecer no seu plantão na emergência. Vamos entender então tudo sobre esta arritmia?

Mas antes de nos aprofundarmos nesse assunto, temos uma dica de ouro para quem quer ficar por dentro de tudo sobre o eletrocardiograma: que tal dar uma olhada no nosso curso gratuito de ECG? Ele vai te ajudar a interpretar e detectar as principais doenças que aparecem no seu dia a dia como médico. E se você vai prestar as provas de residência médica, pode apostar que vai ficar muito mais fácil acertar as questões de ECG que caem nos exames! Basta se inscrever AQUI para receber seu acesso ao curso. Corre lá!

Enfim, o que é esse tal de Torsades de Pointes?

Torsades de Pointes é o nome dado para um subtipo de Taquicardia Ventricular Polimórfica, a qual apresenta uma morfologia típica e peculiar, sendo que caracteristicamente ocorre em pacientes com intervalo QT alargado. Vamos por partes?

Taquicardia: Frequência cardíaca > 100 bpm.

Ventricular: Complexos QRS alargados (> 120 ms).

Polimórfica: A morfologia dos complexos QRS são diferentes entre si.

Morfologia (Torsades de Pointes = Torção das pontas): Observe no ECG que os QRS estão apontando para baixo no início, depois ocorre uma “torção das pontas” e passa a apontar para cima. Em seguida ocorre novamente uma “torção das pontas”.

Torsades de Pointes: a mais elegante das arritmias
Fonte: Adaptado de https://litfl.com/polymorphic-vt-and-torsades-de-pointes-tdp/

Intervalo QT longo: Aqui, meu amigo, o buraco já é mais embaixo. Antes de entrar em detalhes, entenda que o intervalo QT é representado pela distância entre o início da onda Q e o final da onda T; e se altera dependendo da FC. Pensa assim: Se a FC está aumentada, o QT ficará menor, a distância entre a onda Q e a onda T fica encurtada.

Visualmente pensamos em QT longo quando a onda T está muito afastada do QRS que a precede (mais próxima do QRS seguinte do que do anterior sugere QT longo). Mas, como eu sei que você não se contenta com isso apenas, vou te explicar como se faz o cálculo.

Fórmula de Bazzet (Cálculo do Intervalo QT corrigido pela FC):

Torsades de Pointes: a mais elegante das arritmias

Importante:

  • QT deve ser medido em milissegundos
  • RR deve ser medido em segundos

Definição de QTc longo:

≥ 450 ms (homens) 

≥ 460 ms (mulheres)

Exemplo do uso da Fórmula de Bazzet:

Saiba mais sobre a mais elegante das arritmias
Fonte: Adaptado de https://ecg.bidmc.harvard.edu/mavendata/images/case1/img.pdf

Detalhe: 1 quadrado pequeno = 0,04 segundos = 40 milissegundos

Por que devo saber isso?

Porque sim. Brincadeira, preciso descontrair um pouco depois de te mostrar eletrocardiograma, fórmulas e cálculos, certo? Enfim, de fato Torsades de Pointes não é uma taquiarritmia comum, no entanto ela tem algumas particularidades no tratamento que nós médicos precisamos saber.

Além disso, ela tem o potencial de ser muito grave, pois ela pode trazer como consequência instabilidade hemodinâmica, degeneração para Fibrilação Ventricular e, claro, levar a uma Parada Cardiorrespiratória. Em alguns casos, ela cessa espontaneamente, em outros causa morte súbita. Acho que deu para entender a importância deste tema agora não é mesmo?

Eu sei que você não vai sair calculando o QTc no meio da emergência de cada ECG que aparecer na sua frente, mas é importante que você saiba procurar a fórmula caso você desconfie que o intervalo QT possa estar alargado. Em contrapartida, identificar um Torsades de Pointes no monitor você é obrigado a saber, se já esqueceu, volte para o ECG que te mostrei no início deste artigo.

Quais são as causas de Torsades de Pointes?

Síndrome do QT longo congênito

Como o próprio nome já diz, é congênito, a pessoa já nasce com o Intervalo QT longo e tem predisposição para evoluir com Torsades de Pointes. Algumas predisposições para Torsades de Pointes seriam: 

  • Síndrome de Jervell e Lange-Nielsen
  • Síndrome de Romano-Ward
  • Idiopática

Síndrome do QT longo adquirido

Aqui temos alguma causa determinando este prolongamento do Intervalo QT. Abaixo trazemos alguns exemplos. Mas tenha em mente que muitos medicamentos têm este potencial de prolongar o QT e seria impossível decorar todos, todavia, saiba os mais comuns e as classes mais relacionadas; na dúvida, google it (pesquise)!

Causas de QT longo adquirido
Antiarrítmicos (Amiodarona, Procainamida, Sotalol…)
Antibióticos (Azitromicina, Quinolonas…)
Antimaláricos (Hidroxicloroquina…)
Psicotrópicos (Antipsicóticos, Tricíclicos…)
Outras classes (Antirretrovirais, Antineoplásicos, Antieméticos, Anti-histamínicos…)
Distúrbios eletrolíticos (Hipocalemia, Hipomagnesemia, Hipocalcemia…)
Outros (Hipotermia, HIV, IAM…)
No quadro: as causas mais comuns e as classes mais relacionadas à Síndrome do QT longo adquirido.

Enfim, existem muitas causas e muitos medicamentos que podem prolongar o QT; então não devo prescrever mais nenhum destes remédios? Calma, claro que deve, o problema é prescrever sem necessidade (quando bem indicado, qualquer um desses apresenta mais benefício do que risco).

E aqui entra mais um ponto de relevância, durante a pandemia da COVID-19 foram prescritos em larga escala Azitromicina e Hidroxicloroquina; não entrarei em detalhes e polêmicas agora, mas não seria tão incomum nesse cenário que estamos vivendo em 2020/2021, nos depararmos com um Torsades de Pointes bem na nossa frente. Por isso, muita atenção!  

Fisiopatologia

Já entendemos que Torsades de Pointes nada mais é do que uma TV Polimórfica e que tem relação com o QT longo, beleza; agora vou te explicar porque isso ocorre

A explicação está atrelada ao “fenômeno R sobre T”, e é exatamente o que o nome já diz; a arritmia é deflagrada após um batimento (onda R) ocorrer durante a repolarização ventricular (onda T). 

Esse fenômeno não é exclusivo do Torsades de Pointes, no entanto, o fato do paciente apresentar o intervalo QT longo, favorece isso, afinal a onda T fica mais próxima da onda R subsequente.

E vou além, o motivo pelo qual o paciente tem esse tal de QT longo é explicado por problemas que envolvem os canais de eletrólitos e, basicamente, a repolarização fica mais lenta.

Imagine comigo a seguinte situação – deflagração da arritmia:

  • Ocorre inicialmente uma extrassístole ventricular (QRS vem antes do tempo habitual.
  • Após esse batimento prematuro, temos uma pausa compensatória (o próximo batimento demora mais para vir – comum ocorrer após extrassístoles).
  • Uma nova extrassístole ocorre e nesse momento ela “cai” bem em cima da onda T do ciclo anterior, deflagrando então o Torsades de Pointes.

Sendo um paciente predisposto (Síndrome do QT longo – congênito ou adquirido), a situação acima fica ainda mais fácil de ocorrer.

Tratamento

Primeiro passo: tem instabilidade?

Critérios de instabilidade
Hipotensão/choque
Rebaixamento do nível de consciência
Dor precordial
Dispneia (insuficiência cardíaca/edema agudo de pulmão)
No quadro: os critérios de instabilidade no paciente.

Paciente instável

Atenção, muita atenção. Pacientes instáveis com Torsades de Pointes devem ser submetidos à desfibrilação elétrica, isso mesmo, desfibrilação (não cardioversão). A explicação para isso é simples, nos casos de TV polimórfica não podemos cardioverter, já que, por ser polimórfica, ela apresenta morfologias diferentes entre cada QRS e, por conta disso, não há como sincronizar (lembre-se, é justamente a sincronização que diferencia desfibrilação de cardioversão).

Para memorizar – indicações de desfibrilação:

  • Fibrilação ventricular (ritmo de PCR)
  • Taquicardia ventricular sem pulso (ritmo de PCR)
  • Taquicardia ventricular polimórfica instável (incluindo Torsades de Pointes)

Paciente estável

Ufa! Aqui é mais “tranquilo”, mas nem tanto, mantém o foco.

  1. Síndrome do QT longo – sem Torsades de Pointes:

Nesse caso devemos suspender medicamentos que prolonguem o intervalo QT e tratar distúrbios eletrolíticos que possam estar associados (hipocalemia, hipomagnesemia, hipocalcemia…), para evitarmos que a arritmia seja deflagrada.

  1. Torsades de Pointes – paciente estável: 

Já sei! Se é uma arritmia, vou usar o antiarrítmico que mais conheço – Amiodarona! NÃO FAÇA ISSO!

Se você abriu este artigo e pulou direto para o tratamento, volte para o início e dê uma atenção especial para as causas de QT longo adquirido, pois lá eu te falei que alguns antiarrítmicos podem prolongar o intervalo QT – e a amiodarona foi o primeiro exemplo que coloquei. Lembra que essa arritmia acontece justamente pelo fato de que o paciente tem o intervalo QT longo? Imagina se você der uma medicação que vá piorar ainda mais isso… 

Então se não posso usar a boa e velha amiodarona o que eu faço?

  • Antes de sair por aí prescrevendo alguma medicação, retire aquelas com potencial de prolongar o intervalo QT e corrija distúrbios eletrolíticos que possam estar relacionados.
  • Tratamento de primeira linha: Sulfato de Magnésio EV (1-2g)
    • Exemplo: 2ml com concentração 500mg/ml (1g) diluído em 8ml de SF 0,9%
    • Se não reverteu: Pode repetir (máximo de 4g em 1 hora)
  • Tratamento de segunda linha: Marca-passo transvenoso / Lidocaína

Torsades de Pointes sendo deflagrado

Último eletrocardiograma, prometo. Para encerrarmos com chave de ouro, vamos ver um Torsades de Pointes sendo deflagrado? 

Saiba mais sobre a mais elegante das arritmias
Fonte: Adaptado de Gowda RM. Torsade de pointes: the clinical considerations. Int J Cardiol 2004; 96(1): 1-6.

Não temos como calcular o QTc aqui pela qualidade do ECG, mas “no olho” observamos que a onda T (do primeiro QRS) está um pouco mais próxima do QRS seguinte do que está em relação ao anterior. Possível QT longo

O terceiro batimento é uma extrassístole e depois dele observamos uma pausa compensatória. Até aqui foi? 

Agora, um pouco mais difícil, consegue ver que após o quarto QRS, bem onde seria a onda T (considerando que seria o mesmo intervalo QT do primeiro ciclo), surge uma espécie de QRS (precocemente e com morfologia semelhante ao terceiro batimento – ou seja, uma nova extrassístole).

Após este fenômeno R sobre T, surge de fato a arritmia. Aqui, você já está craque em identificar um Torsades de Pointes, certo?

Ufa, é isso!

Hoje você vai para o plantão bem mais tranquilo não é mesmo? Pode vir até um Torsades de Pointes que você, de forma brilhante, irá diagnosticar e saberá muito bem o que fazer. Temos mais um estímulo para estudar Torsades de Pointes: este tema está badalado nas provas de residência médica. Não acredita? Confere então a questão 22 da USP-SP 2021 e a questão 26 da UNIFESP 2021. Depois de ler este texto garanto que você acertará com facilidade.

Bom, agora que você está mais informado sobre Torsades de Pointes, temos uma dica pra você. Confira mais conteúdos de Medicina de Emergência na Academia Medway. Por lá disponibilizamos diversos e-books e minicursos completamente gratuitos! Por exemplo, o nosso e-book ECG Sem Mistérios ou o nosso minicurso Semana da Emergência são ótimas opções pra você estar preparado para qualquer plantão no país.

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BrunoBlaas

Bruno Blaas

Gaúcho, de Pelotas, nascido em 1997 e graduado pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Residente de Clínica Médica na Escola Paulista de Medicina (UNIFESP). Filho de um médico e de uma professora, compartilha de ambas paixões: ser médico e ensinar.