Neutropenia febril: uma verdadeira emergência médica

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Fala, pessoal! O tema de hoje é de extrema importância: a mudança na abordagem da neutropenia febril faz muita diferença no prognóstico dos pacientes oncológicos com essa condição. Acredite: mesmo fora dos grandes centros, pacientes chegarão neutropênicos e com febre no seu pronto-socorro! Mas sem pânico, galera. Com a compreensão da gravidade desse quadro e seguindo passos já bem estabelecidos na literatura, podemos mudar o desfecho clínico de pessoas nessas condições.

Vamos juntos?

Qual a importância da neutropenia febril?                             

Vou te dar dois, dentre vários exemplos/motivos que justificam ter muita atenção neste texto:

1)  Antes da disseminação do uso de antibióticos, as infecções perfaziam 70% das mortes de pacientes com leucemia aguda em casos de febre associada à neutropenia febril. A maioria das infecções neste contexto são bacterianas e oriundas da própria flora do indivíduo.

2)  Devido à falta de células que compõe nosso sistema de defesa e de “reação às invasões” bacterianas, as infecções podem se manifestar apenas com febre e, caso manejadas de forma imprecisa, podem levar um paciente que chega conversando em aparente bom ou ao menos regular estado geral, ao óbito em poucas horas!

É, é importante mesmo… mas como identificar a neutropenia febril?

De forma simples e direta, no contexto de tratamento quimioterápico em paciente com diagnóstico de neoplasia, devem estar presentes 2 critérios:

1)  Neutropenia: neutrófilos < 500/mm³ ou < 1000/mm³, com previsão de queda para < 500/mm³ nas próximas 48h. 

O que define essa previsão de queda é, basicamente, a intensidade da quimioterapia e o tempo previsto para o nadir de leucócitos no organismo do paciente.

2)  Febre: temperatura ≥ 38ºC por 1 hora ou ≥ 38,3ºC em pico único.

a. Aqui temos um “problema”: na literatura internacional, de onde tiramos esses valores, só são consideradas as temperaturas oral e de membrana timpânica. Uma aproximação válida para a realidade brasileira, na hora de medir a temperatura, é usar a temperatura axilar ≥ 37,8ºC, para diagnóstico. Essa extrapolação vem do conceito semiológico de que a temperatura axilar é cerca de 0,3 a 0,5ºC menor que as temperaturas oral e de membrana timpânica.  

Perceba que se um paciente tem temperatura axilar de 38ºC, com certeza a temperatura oral, por exemplo, deverá preencher os critérios diagnósticos internacionais, ou seja, fazemos essa adaptação do 37,8º axilar para não perder sensibilidade diagnóstica considerando nosso método de aferição principal, fechou?

Agora, um conceito prático: num contexto de quimioterapia recente, não espere o hemograma para começar a tratar o indivíduo! Se há febre, assuma que deve ser neutropenia febril e inicie o antibiótico! Já te explico mais sobre o período pós quimio que deve nos deixar de radar ligado..

Outro ponto relevante é que nem toda febre em paciente neutropênico é infecção, mas vamos tratar como se fosse!  Reações à transfusão, tão comuns neste perfil de paciente, ação de citocinas do próprio tumor e até reabsorção de hematomas podem ser a causa da febre, mas não custa repetir: pela possível gravidade do quadro, trate como neutropenia febril!

Mas por que essa agressividade?

Fonte: Vix

Sabemos que os quimioterápicos tentam, de modo muito simplificado (muito mesmo!), impedir que a célula tumoral continue a se proliferar. Mas todas as células que têm alto grau de replicação, como as hematológicas e as da mucosa gastrointestinal, são afetadas. Resultado: citopenias e fragilidade das barreiras corporais, especialmente a do trato gastrointestinal.

Percebeu? Temos células de defesa em pequena quantidade e uma barreira mucosa bastante enfraquecida. A combinação tem um potencial de gravidade muito alto.

“E por que a febre pode ser a única manifestação?”

Simples: para termos um infiltrado pulmonar na pneumonia, flogose numa lesão de pele ou disúria numa ITU, precisamos de leucócitos produzindo substâncias inflamatórias, que produzirão vasodilatação, calor, rubor, dor e sintomas, de um modo geral. Sem essas células, existem bactérias, mas não existe grande reação de combate à elas, o que resulta em quadro frusto e que demanda muita perspicácia!

Antes de saber como manejar a neutropenia febril, temos uma dica de ouro: nosso guia rápido de transfusões para o clínico. Nesse material, você vai aprender desde procedimentos mais especiais até os cuidados durante as transfusões. Está esperando o que? Faça já o download gratuito e esteja preparado para uma prática clínica segura e eficaz!

Espero que tenha te convencido da gravidade do quadro! Mas e aí, como manejar a neutropenia febril?

Voltando ao assunto, tentando sistematizar a abordagem, você precisa ter em mente três conceitos:

Fonte: Kawek

1- O menor valor (nadir) de neutrófilos em esquemas quimioterápicos varia, mas geralmente é entre 10-14 dias. Porém, recomenda-se que todo paciente em tratamento quimioterápico, nas últimas 6 semanas, especialmente nas neoplasias hematológicas, deve te fazer lembrar do diagnóstico de neutropenia febril, com o intuito de aumento de sensibilidade na suspeição. Sempre consulte a literatura para confirmar o tempo de neutropenia esperado para determinado esquema de tratamento!

2- Na simples suspeita, deve-se fazer, quase simultaneamente:

a. Estabilização e definição se há quadro séptico: seguindo o ABCDE do paciente grave e o quickSOFA avalie se há risco para sepse. Se sim, siga os protocolos de abordagem do paciente séptico.

b. Ainda que seja tarefa difícil, procure um foco insistentemente!

Cara, aqui é anamnese com limiar de suspeição bem baixo: qualquer dor e flogose, qualquer tosse nova e mudança de padrão miccional ou intestinal devem te chamar à atenção.

Exame físico completo, por favor! Examine cavidade oral, períneo, genitália, toda a pele do paciente! A presença de lesões mucosas (mucosite) e certos sítios de infecção mudam a terapêutica e seu exame físico tem papel fundamental nesta questão! E quer uma dica da vida prática? Não se contente ao achar um foco: não é infrequente que um paciente com tosse e foco pulmonar tenha infecção de pele ou de mucosa orofaríngea associadas, que passará despercebida se feita uma análise superficial! 

Detalhe: só não faça toque retal, pois devido a fragilidade de barreira do TGI, este procedimento favorece a translocação bacteriana

Fonte: Dentflex

c. Coleta de exames: obter laboratoriais gerais, Urina Rotina e 2 sets de hemoculturas de sítios distintos. Estes devem ser colhidos de forma rápida, para não atrasar o uso de antibióticos. Cada “set” deve ter 20ml, sendo 10 para anaeróbios e 10 para aeróbios. Na presença de acesso venoso central, colher 1 set de cada lúmen e 1 set de sangue periférico.

3- Início de antibiótico: em menos de 1h! Essa conduta salva vidas! Inclusive, se você perceber que a coleta de hemoculturas não vai respeitar esse limite, deverá começar a antibioticoterapia antes mesmo da obtenção desse exame, ainda que haja algum prejuízo na identificação dos agentes causadores, com tal atraso.

Mas qualquer antibiótico serve?

Negativo! E aqui, o entendimento de que a barreira do trato gastrointestinal está frágil tem relevância prática! 

Embora nos EUA os estudos identifiquem mais comumente infecções por Gram positivos, como o S. epidermidis, acredita-se que no Brasil a maior parte seja por Gram negativos entéricos, no contexto de neutropenia febril. 

E vem cá, de qualquer forma, a mortalidade, devido à maior virulência, é por Gram negativos. Dentre os Gram negativos entéricos, a cobertura que sempre deve ocorrer, independentemente do sítio suspeito de infecção, é contra Pseudomonas aeruginosa, que facilmente ultrapassa uma mucosa intestinal debilitada por quimioterápicos. Não tô dizendo que vamos cobrir apenas ela sempre, mas esta cobertura não pode faltar, fechado?

Outro ponto relevante é considerar tratamentos recentes com antibiótico. Se o paciente já usou cefepime, por exemplo, numa internação passada há menos de 30 a 90 dias (esses limites têm variações na literatura), você precisará avançar na cobertura antimicrobiana!

Definindo o risco para escolher o antibiótico

Partindo do princípio que devemos cobrir Pseudomonas sempre, precisamos saber se poderemos tratar o paciente com neutropenia febril em casa, ou se precisamos interná-lo.

E aí, entra a classificação de risco:

1)  Neutropenia febril de alto risco: qualquer um dos seguintes põe o paciente nessa categoria!

a. Todo paciente em indução de remissão de Leucemia Aguda

b. Todo paciente em tratamento quimioterápico para realização de Transplante de Medula Óssea alogênico.

c. Expectativa de neutropenia por > 7 dias. Nessa categoria, entram boa parte dos casos de neutropenia febril em cânceres hematológicos.

d. Instabilidade hemodinâmica

e. Comorbidade prévia em atividade: DPOC, IC, DRC.

f. Infecção de pele ou cateter

g. Mucosite grave: lesões graves, com comprometimento de deglutição ou diarreia importante.

h. Escore MASCC (Multinational Association for Supportive Care in Cancer) < 21 pontos – válidos para tumores sólidos (não validado para casos dos itens “a” e “b”)

i. Neutropenia < 100/mm³. Há serviços que utilizam esse critério como de gravidade.

Esses pacientes demandam tratamento hospitalar com ATB EV, sendo as terapias mais utilizadas o Cefepime, a Piperacilina- + tazobactam ou o Meropenem.

     Escore MASCC: 

CaracterísticasPontuação
Intensidade dos sintomas Assintomático: 6 ptsSintomas leves: 5 ptsSintomas mod-graves: 4pts
Ausência de hipotensão5 pts
Ausência de DPOC4 pts
Portador de tumor sólido ou ausência de infecção fúngica4 pts
Ausência de desidratação3 pts
Não hospitalizado ao aparecimento da febre3 pts
Idade < 60 anos 2 pts 
Risco: ≥ 21 pts = baixo risco e < 21 pts = alto risco.
Adaptado MARTINS, Herlon Saraiva; BRANDÃO NETO, Rodrigo Antonio; VELASCO, Irineu Tadeu. Medicina de emergência: abordagem prática. [S.l: s.n.], 2016.

Há casos em que se deve-acrescentar coberturas contra outros germes. Lembra que te disse que anamnese e exame físico podem guiar a conduta?

Quando cobrir Gram positivos?

1)  No paciente instável! Paciente com neutropenia febril e hipotenso, hipoxêmico, ou com critérios de sepse preenchidos merecem essa ampliação de cobertura!

2)  Foco pulmonar: pneumonia documentada com imagem.

3)  Foco cutâneo ou de partes moles.

4)  Foco em cateter venoso (calafrios na infusão ou flogose local).

5)  Mucosite grave, especialmente em pacientes que receberam profilaxia com quinolonas, o que pode resultar em infecção por Streptococcus viridans.

6)  Se colonização por MSRA.

Nesses casos, devemos associar Vancomicina (não substituir o antibiótico que cobre Pseudomonas, mas adicionar Vancomicina ao esquema). Parece segura a suspensão da Vanco em caso de 48h de uso, com boa evolução clínica e sem crescimento de Gram positivos em culturas, caso não haja infecção de pele e partes moles ou mucosite grave.

E quando adicionar metronidazol, pensando em anaeróbios?

1)  Mucosite ou sinusite necrosante

2)  Celulite ou abscesso perianal

3)  Celulite e abscesso periodontal

4)  Infecção abdominal – Enterocolite neutropênica.

5)  Bacteremia por anaeróbicos.

2)  Neutropenia Febril de Baixo Risco: TODOS devem estar presentes (notou a diferença?)

a. Neoplasias e esquemas quimioterápicos cuja expectativa de neutropenia seja < 7 dias.

b. Ausência de comorbidades sistêmicas prévias

c. Ausência de critérios de instabilidade clínica-hemodinâmica

d. Ausência de mucosite grave

e. MASC ≥ 21 pontos

f. Garantia de acesso fácil ao sistema de saúde para reavaliação em 48h-72h ou imediatamente, se piora clínica. 

Esse último critério (letra f) pode ser muito menosprezado na prática clínica, mas é muito importante na nossa realidade, pessoal!

Disse sim para todos os critérios? Então, o paciente pode ser tratado ambulatorialmente, com Ciprofloxacino (cobrindo a temida P.aeruginosa) + Amoxicilina-clavulanato, com reavaliações precoces (2-3 dias), após um período de observação hospitalar por 6-24h, no qual se avalia a tolerância ao esquema antimicrobiano ou se faz uma dose inicial EV de antibioticoterapia apropriada.

Qualquer piora coloca o paciente nos esquemas intra-hospitalares para neutropenia febril de alto risco.

Percebeu que falei do antibiótico antes dos exames de imagem? Foi proposital!

Alguns serviços fazem radiografia de tórax para todo paciente em neutropenia febril. Outros reservam avaliações por imagem apenas se sintomas respiratórios presentes, recorrendo a Tomografia de Tórax e seios da face nos Neutropênicos de Alto Risco. Mas note que não podemos esperar uma tomografia para começar a tratar, fechou? 

Essas tomografias buscam identificar infecções fúngicas e pela chance de repetição deste exame de modo frequente ao longo do tratamento, é feita sem contraste, a menos que se suspeite de foco abdominal. Além disso, a avaliação pela otorrinolaringologia dá maior sensibilidade para identificação de fungos em seios da face, pois a tomo só as identifica em casos mais avançados. 

“E por quanto tempo eu trato o paciente?

Em geral, tratamos os pacientes pelo tempo usual de tratamento quando identificamos o foco de infecção, ou então até 48h de ausência de febre e neutrófilos > 500, com tendência à ascensão. Cuidado ao descalonar antibióticos por culturas enquanto houver neutropenia, lembre que vários focos podem estar presentes simultaneamente, belê ?

O uso de fatores estimuladores de colônia não mostrou reduzir mortalidade neste contexto clínico, embora possa reduzir em até 48h o tempo de internação, o que motiva seu uso rotineiro em vários serviços.

“E se a febre não passa?”

Primeiro, temos que ter em mente um conceito: o tempo de defervescência é de 48h para tumores sólidos e 3 a 5 dias para tumores hematológicos. Portanto, nem toda persistência de febre deve gerar escalonamento de antibióticos. Vamos nos guiar por três parâmetros:

1-  Sítio da infecção

2-  Culturas

3-  Recuperação clínica e laboratorial

Existem diversos protocolos institucionais, mas em geral, podemos sistematizar assim:

– Pacientes em tratamento há 3 dias, com febre persistente:

1) BAIXO RISCO

1.1) BAIXO RISCO, estável e neutrófilos em ascensão: manter acompanhamento

1.2) BAIXO RISCO, instável ou que não sobe neutrófilos: internação, colher novas culturas e transicionar para esquemas EV.

2) ALTO RISCO:

2.1) Estável, neutrófilos em ascensão e culturas negativas: manter esquema e reavaliações durante a internação.

2.2) Instável, neutrófilos sem melhora ou cultura positiva: escalonar antibioticoterapia, reavaliar focos de infecção com novas culturas  e solicitar exames de imagem (TC tórax e Seios da Face).

E quando pensar nos fungos?

Alguns centros propõem investigação de infecções fúngicas invasivas já na chegada, caso o paciente tenha alto risco para tal, como na Leucemia Mieloide Aguda e nos casos de transplante alogênico de medula. Isso é feito com dosagem de Galactomanana (componente de fungos filamentosos, destaque para o Aspergillus), 2-3 vezes por semana.

Outros reservam a pesquisa de fungos para os casos de neutropenia febril persistente: no paciente que tem febre por > 4-7 dias com neutropenia, aumenta-se o medo de infecção por esses patógenos, sendo que se ≥ 7 dias, maior é o risco de Candidemia e, se ≥ 14 dias, considera-se o risco de infecção por fungos filamentosos, sendo o principal, o Aspergillus.

Nesses casos em que a febre que dura ≥ 4-7 dias, há duas abordagens possíveis: a empírica: indica-se cobertura antifúngica, além de TC de tórax e seios da face, sítios comumente afetados por esses patógenos para todos nessa situação; ou a preemptiva: fazer antifúngico se indício clínico, laboratorial (ex: galactomanana) ou radiológico de infecção fúngica 

Em pacientes sem profilaxia antifúngica, o fluconazol ou as equinocandinas podem ser a primeira escolha. Porém, se sinais de infecções fúngicas invasivas (na TC de tórax/seios da face ou ascensão na dosagem de Galactomanana), ou se uso prévio de fluconazol, para profilaxia, aumenta-se a chance de infecção por Aspergillus, o que nos obriga a iniciar Voriconazol ou Anfotericina B.

É isso! Foi muita coisa, mas acabamos!

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Pra cima!

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LucasFaria

Lucas Faria

Mineiro de Uberlândia, nascido em 1995, formado pela Universidade Federal de Uberlândia. Residência em Clínica Médica no Hospital de Clínicas da USP de Ribeirão Preto.